Márcia Fernandes
Como olhar e ver o mundo à nossa volta?
Para a redescoberta de conceitos e valores, é preciso ver além do óbvio
e do que é literalmente visível, é preciso mergulhar na realidade de novos "espantos".
É preciso também repensar
o nosso condicionamento de sempre querer concluir, fechar as ideias. Com a ajuda da Filosofia, busquemos a
busca da construção de novos
olhares e conceitos.
O que é pensar filosoficamente? Qual a relação entre o espanto e o sentimento
filosófico? Espantar-se é olhar com propriedade, olhar de olhos abertos, é ver sem pressa, sem formatação pré-estabelecida, é olhar com calma,
descompromissadamente e com sentimento sobre as coisas.
Mas quem, quando e como se olha assim? O filósofo tem esse
olhar com a essência infantil da
descoberta sobre as coisas, as pessoas, os acontecimentos. Ele cultiva esse olhar de
perplexidade e admiração, de quem não se acostuma nunca com as mesmas imagens,
com a mesmas pessoas e coisas.
Nos acostumamos a enxergar ao nosso redor de acordo com o estabelecido, o condicionado. Não exercitamos nossa
curiosidade mas os novos tempos nos exigem que voltemos a olhar as coisas
com o espanto de quem as vê pela primeira vez, e assim questioná-las, com esse olhar contemplador, que também se
maravilha. Mas isso requer uma
busca inquieta e indisciplinar,
um pensar e ver sem fronteiras.
Segundo Stein, "o ser-possuído pelo olhar, o dever-ser-inteiramente-olhar
para o que se apresenta, define a essência da admiração". Ou seja, a
essência do ato de se admirar está em atentar com olhos não silenciosos, captadores de novas perspectivas e de visões do já visto.
No
filme "A janela da alma", de Wim Wenders, o neurologista Oliver Sacks afirma: "o ato de olhar não se limita ao visível, mas também ao invisível". É
olhando além do visível, exercitando os olhos da alma, que construímos uma
releitura do mundo. O exercício possível consiste em ver além do óbvio, questionar o visível, provocar o estranhamento.
Para ver o filme, acesse https://www.youtube.com/watch?v=56Lsyci_gwg. |
Também Saint-Exupéry e Ionesco nos incentivam a mergulhar nas infinitas possibilidades de ver, sentir e
pensar para assim ampliar nossas
perspectivas, sentimentos e conceitos. Novas imagens nos levam a
novas essências. "O essencial
é invisível aos olhos", escreveu Saint-Exupéry. "Mergulha,
sem limites, no espanto e na estupefação. Deste modo, podes ser sem limites,
assim podes ser infinitamente.", defendeu Ionesco.
Mergulhemos pois no espanto para a
(des)construção do ver. Não permitamos ser abatidos pela crise
que pode nos assolar de uma só vez, tornando-nos taciturnos e acomodados. Debrucemo-nos sobre a construção do olhar da
filosofia, que pode nos manter longe do pesado fardo do conformismo e do ser
acabado, pré-definido.
É
preciso estarmos atentos aos ladrões e
manipuladores da consciência crítica que nos roubam as possibilidades de
ver e nos embriagam de um conformismo autista em relação a uma realidade
dada. Não nos deixemos ser "metamorfoseados", tais como "Os
rinocerantes" de Ionesco. (1) Filosofemos,
busquemos thaumazein (2), não percamos a capacidade de nos admirar. Não nos
deixemos ser sugados pela hipocrisia de um olhar dogmático.
Ver Jessica Friedowitz |
A filosofia é a mola da
sensação de desconforto que nos
faz buscar novas repostas para aquilo
que nos incomoda ou por aquilo que não mais nos incomoda. Filosofando, transgredimos, especulamos e desconfiamos sempre. Marilena Chauí, em seu livro Convite à filosofia, diz (3):
se
abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil;
se não se
deixar guiar pela submissão às idéias dominantes e aos poderes estabelecidos
for útil;
se buscar compreender a significação do mundo, da cultura, da
história for útil;
se conhecer o sentido das criações humanas nas artes, nas
ciências e na política for útil;
se dar a cada
um de nós e à nossa sociedade os meios para serem conscientes de si e de
suas ações numa prática que deseja a felicidade e a liberdade para todos for
útil,
então podemos dizer que a filosofia é o mais útil de todos os saberes de
que os seres humanos são capazes.
***
NOTAS
1- A peça "O Rinoceronte", escrita há mais de 40 anos por Ionesco, é ainda bastante atual. Ela conta a história de uma cidade pacata que se transforma após a passagem de um rinoceronte por suas ruas. À medida que a origem do paquiderme é discutida e em alguns casos rebatida, a sua presença, misteriosa e incontrolavelmente, se prolifera, até notarmos que são os próprios cidadãos da cidade que gradualmente se transformam em rinocerontes. Nas entrelinhas, o rinoceronte mostra o conformismo da sociedade. A metamorfose é uma analogia ao processo de mediocrização social pela nossa incapacidade de ir contra as regras impostas e massificadoras, atreladas a um poderio corrupto e ambicioso. Cf. http://www.notaindependente.com.br/materias.php?id=0085
1- A peça "O Rinoceronte", escrita há mais de 40 anos por Ionesco, é ainda bastante atual. Ela conta a história de uma cidade pacata que se transforma após a passagem de um rinoceronte por suas ruas. À medida que a origem do paquiderme é discutida e em alguns casos rebatida, a sua presença, misteriosa e incontrolavelmente, se prolifera, até notarmos que são os próprios cidadãos da cidade que gradualmente se transformam em rinocerontes. Nas entrelinhas, o rinoceronte mostra o conformismo da sociedade. A metamorfose é uma analogia ao processo de mediocrização social pela nossa incapacidade de ir contra as regras impostas e massificadoras, atreladas a um poderio corrupto e ambicioso. Cf. http://www.notaindependente.com.br/materias.php?id=0085
2- Thaumazein é o verbo grego que de modo aproximativo tentamos traduzir como
admirar-se, espantar-se. Trata-se de um estado que nos acomete quando nos defrontamos com
algo estranho por ser thaumaston, extraordinário, admirável. No
diálogo Teeteto, Platão refere-se à esta admiração como um pathos um estado
interior que sentimos quando algo nos arrebata. Cf. http://www.fae.unicamp.br/vonzuben/filos.html