Produzido no Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro - ISERJ. Nosso e-mail: cidadeeducativa@googlegroups.com

16 de dezembro de 2013

O livro urbano do profeta Gentileza virou pó?

   Mônica Vallim
          Há 52 anos, na antevéspera do Natal de 1961, seis dias após o trágico incêndio do Gran Circus Norte-Americano, onde morreram mais de 500 pessoas, a maioria crianças, José Datrino, um paulista nascido em 1917, aos 44 anos, sentiu-se de alguma forma tocado ou incomodado por Deus. Deixou todos os seus bens materiais para seus familiares, e resolveu fazer canteiros de flores e hortaliças nas cinzas do circo em Niterói, que passou a ser conhecido como Paraíso Gentileza.
Fonte: http://www.projetovip.net/0411.htm
          Em meados da década de 70 tornou-se o andarilho barbado de bata branca, com estandarte erguido nos trens e barcas pregando a sua máxima GENTILEZA GERA GENTILEZA. Mas segundo pessoas que conviveram com ele, o profeta era um pregador moralista, e algumas vezes até mesmo agressivo com os transeuntes, por ser muito crítico às minissaias da época, precisando em certas ocasiões ser contido por policiais.
          Na década de 80 virou uma espécie de personalidade carioca quando decidiu pintar murais artísticos nas pilastras do viaduto da Perimetral, no Caju.
          Pintou um total de 56 pilastras que constituíam um verdadeiro livro urbano numerado no principal acesso rodoviário ao Rio de Janeiro.
          Gentileza escolheu pilastras na zona portuária próximas à Rodoviária Novo Rio, onde se dedicou a escrever suas mensagens de amor à natureza, gentileza ao próximo e críticas ao “capetalismo”. Seria um louco e fanático o nosso profeta?
          Segundo o filósofo Giorgio Agamben, o capitalismo é uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e o objeto é o dinheiro.
***
          Após a sua morte em 1996, devido às pichações a Prefeitura resolveu pintar todas as pilastras de cinza, mas houve uma mobilização de acadêmicos e artistas para que as pilastras fossem restauradas. Em 1999 esse movimento deu origem ao projeto "Rio com Gentileza" visando a restauração dos painéis, concluída em maio de 2000.

          Com o megaprojeto de revitalização do Porto Maravilha, houve a promessa do atual prefeito, Eduardo Paes, de preservar algumas pilastras do Gentileza. Entretanto, se até seis vigas de aço de vinte toneladas cada desapareceram sem que ninguém tenha visto, apesar das várias câmeras de monitoramento espalhadas pela cidade, será mesmo que os painéis de Gentileza serão preservados conforme o prometido ou virarão pó?
          Dia 24 de novembro de 2013 o primeiro trecho do Elevado da Perimetral foi implodido. Até o momento o que foi feito desses murais continua sendo um grande mistério. Mas ao menos salvaram em um blog as fotos  de 55 pilastras restauradas do profeta Gentileza. 
          Inspirado nas ideias de Lefebvre para investigar as ligações entre urbanização, capitalismo e direito à cidade, o geógrafo britânico David Harvey escreveu um artigo inicialmente publicado na revista New Left Review, em 2008, que nos dá algumas pistas quentes para compreender esse episódio um pouco mais.
          Os processos de reurbanização seguem um modelo mundial que atende prioritariamente aos interesses neoliberais de economia globalizada a qualquer preço dirigida aos que dispõem de capital para reinvestir seus lucros em parcerias público-privadas. Utilizando a força do braço armado do Estado, promovem remoções forçadas e gentrificação em determinadas áreas que julgam economicamente promissora. 
          Na medida em que não se investe na mesma proporção em transporte público, saúde, educação e infraestrutura de saneamento básico nas periferias (que a cada verão sofrem com inundações ou deslizamentos após obras públicas de fachada, e responsabilizam a natureza ou o lixo dos pobres pelo caos), vislumbra-se o porquê dos movimentos sociais defenderem generalizadamente relações anárquicas com o poder. E assim as manifestações, que andam violentamente explodindo em várias capitais do mundo, em contrapartida justificam o investimento do Estado em segurança pública.
          A crítica do profeta Gentileza ao "capetalismo", intencionalmente se referindo ao capital como se fosse o capeta da humanidade em seu círculo tendencioso e ilusório, não foi senil ou desatinada diante do que se vive hoje nas grandes metrópoles. 

Fontes
MUSEU VIRTUAL GENTILEZA

IMPLOSÃO DA PERIMETRAL

ENTREVISTA COM AGAMBEN

11 de dezembro de 2013

Brinquedos de ontem e hoje - relato de um Congresso (UFF /2013)

                                                                                                                                                                                     Cris Muniz
Fomos ao Congresso de Brinquedos de Ontem e Hoje apresentar um relato preliminar do projeto Canteiro de Obras na “Ciranda de ideias”, uma modalidade muito interessante de troca de experiências na forma de conversa entre pares. Ali estavam presentes outras iniciativas de caráter não formal, assim como as brinquedotecas, a maioria de escolas de formação de professores, para refletir os limites e possibilidades de um trabalho com o lúdico na formação docente.
          Gostaria de compartilhar aqui algumas questões apresentadas neste evento por Jader Janes, um professor do grupo de pesquisa em Geografia da Infância que penso dialogar com nossas investigações/inquietações. Os estudos desse grupo pensam a criança como um ser geográfico considerando o espaço uma dimensão significativa para sua vida em sociedade e investigam o que definem como territorialidades infantis. Segundo Janes, a investigação da Geografia da Infância busca a forma como a categoria da espacialidade é concebida e como interfere em nossa relação com as crianças e na produção de suas infâncias.
          A pesquisa apresentada no Congresso discutiu o conceito de evolução linear da noção de espaço – do mais próximo para o mais distante – presente nos currículos escolares. Esses gradativamente constroem os diferentes níveis ou dimensões do espaço – eu/minha casa, minha sala, escola, bairro, cidade,  mundo, problematizando as relações entre o mundo e o que está aqui próximo. Esses questionamentos partiram da pesquisa desenvolvida pelo grupo com crianças migrantes. Nelas, a lógica espacial ensinada nas escolas não apareceu, o que aponta para a possibilidade de pensar outras geografias e outras escalas, e para a ideia de topofilia indicada pelos elos afetivos entre a pessoa e o lugar ou seu ambiente físico.
          As crianças migrantes estudadas, mas também outras envolvidas na pesquisa autodenominam-se mudantes – aqueles que mudam constantemente de moradia dentro da própria cidade – e demonstram possuir uma noção de espaço/lugar próximo não como referência espacial, mas afetiva.  O lugar mais destacado pelas crianças migrantes/mudantes foi a escola, especialmente os seus lugares de brincar e de comer, como o refeitório, evidenciando-se aí a prática do territoriolugar em uma escala vivencial, e remetendo ainda à ideia de paisagem que, para além das formas, comportam também cheiros, sons, sabores...
Livro lançado por Jader Janer em 2013 pela editora mediação
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Rememorando passeios:
Topocídio e Autointerdição


          Durante seu relato, Jader comentou ainda a ideia de topocídio ao se referir às remoções de populações pobres de seus lugares/moradias (hoje, como ontem, tão presentes em tempos de Copa do Mundo e Olimpíadas!). Essas reflexões me fizeram recordar alguns passeios que fiz com crianças do CIEP de Ipanema logo no início do projeto Ônibus da esperança (Bus der Hoffnung). Creio ser possível pensar em um tipo de topocídio ao inverso pelo qual moradores de determinados lugares não podem se mover ou pior não se permitem nem mesmo sair.
          Foi isso que senti, por exemplo, quando propus nosso mais longo passeio à cidade de Petrópolis anunciando, com os termômetros recém-chegados à escola para aulas de geografia, que teríamos que subir a serra com lindas montanhas muito altas e iríamos perceber as mudanças de temperatura e tudo o mais. O que aconteceu? Algumas crianças simplesmente não apareceram no dia do passeio. Soubemos depois, com medo de cair lá de cima das montanhas. Outras passaram mal quando paramos no alto da serra, achavam que não estavam mais respirando. Com esse mesmo grupo, em nosso primeiro passeio ao Jardim Botânico/RJ, fui interpelada pela funcionária do orquidário preocupada se as crianças não iriam destruir as orquídeas, ao que não me contive e respondi que elas já haviam comido as carnívoras antes! Depois disso, no caminho de volta deste mesmo passeio, descemos na orla da Lagoa e fomos a pé até a rua Teixeira de Melo, em Ipanema, que dá acesso ao elevador para o CIEP Ipanema, e aí então foram as crianças que, refratando talvez a experiência vivida, me interpelaram perguntando se poderiam andar ali, se não seriam chamadas de faveladas?! Enfim são muitas as exclamações pela interdição ou autointerdição de acesso aos lugares, pela falta de oportunidade de viver lugares experiências, esses onde podemos nos sentir imersos na cidade, pertencendo a ela como qualquer cidadão.

A participação da criança na cidade 4 - Infância e Cidade

Márcia Fernandes
Nesta quarta postagem da série "A criança e sua participação na cidade" trazemos várias perguntas levantadas pela Dissertação de Mestrado da palestrante Fernanda Muller e pelas colocações da coordenadora de comunicação da UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), Imaculada Prieto.  Trata-se de uma reflexão sobre as políticas públicas e as ações sociais voltadas para as crianças. Elas as atendem de fato? Até que ponto são bem-sucedidas? Enfim, em que medida a infância pertence à criança? As concepções da criança sobre a cidade podem gerar novas concepções sobre a infância? Que contribuições podem ser feitas pelos estudos das crianças?  Que medidas possibilitam e limitam a participação da criança na cidade?
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          Em sua pesquisa Infância e Cidade: a criança em foco, Fernanda Muller diz: "a infância moderna constrói a criança fora da sociedade, silencia suas vozes e nega a sua autonomia. Será que a modernidade rotula uma infância moldada e propositalmente pensada e desejada pelos adultos e não pelas crianças? Silencia suas vozes?" E se nos permitimos olhar pelos olhos da criança, fazendo este exercício que a autora chama de exercício de percepção e escuta infantil, conseguiremos pensar como a criança? Para a autora, a chave está em poder enxergar a criança como um agente social.
          Com um grupo de crianças em Porto Alegre, ela observa como acontecem as entradas e as permanências no campo da diversidade. Para isso, ela lança mão de uma metodologia que leva em consideração a amplidão do conceito de cidade pois esse é um conceito abstrato, diferente no pensamento de cada um, já que relacionado às experiências de cada pessoa.    
          A palestrante falou sobre a metodologia usada na pesquisa  – o recurso da fotografia – , junto a três grupos de diferentes bairros de variadas classes sociais. Após uma incursão fotográfica, promoveu-se uma conversa com as crianças que relataram o que  acharam mais e menos interessante nesse passeio fotográfico.
          Dar a criança esse tipo de autonomia é trazer à luz o seu conceito de espaço, de tempo e de mundo, diferentes do adulto e divergentes, muitas vezes, do conceitos aprendidos na escola e da família. Essa autonomia conceitual (Marchi, 2007)  dá visibilidade às interações infantis, tal como mostradas no documentário premiado pelo Oscar Nascidos em Bordéis que retrata a vida de crianças no bairro da Luz vermelha em Calcutá e filmado a partir de incursões fotográficas feitas pelas crianças em que elas registravam as suas impressões sobre as ruas do bairro.  A fotografia, dessa maneira, torna-se uma ferramenta de expressão e de voz dessas crianças para o mundo.
          Fernanda Muller propõe, na conclusão de seu trabalho, que para se chegar às crianças é importante que essas sejam  incluídas  nas discussões sobre a cidade que habitam, isto é, que ouçamos a voz das crianças. É que proponhamos um novo modelo de cidade a partir do seu ponto de vista. Enfim, saber quais seriam os  modelos de cidade propostos pelas crianças.
          A autora salienta que é preciso que se  promovam novas ideias sobre quem tem o direito de usar os novos espaços urbanos, obedecendo aos princípios tanto de agência quanto de estrutura. Desse modo, ela traz a novidade da  cidade como laboratório público e as crianças como membros das discussões políticas.
Nascidos em Bordéis (86', 2004). Born Into Brothels: Calcutta's Red Light Kids. Dir: Ross Kauffman e Zana Briski.  Premiado nos mais importantes festivais internacionais, incluindo Sundance e a International Documentary Association, essa co-produção EUA/India é assinada por dois cineastas que narram sua experiência em Calcutá, quando conheceram de perto a vida dos filhos de prostitutas que trabalham na área dos bordéis da cidade.
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          A coordenadora de comunicação da Unicef no Rio de Janeiro, Imaculada Prieto, trouxe para o debate o tema O direito ao direito, em relação a Comunicação, Infância e Cidade, isto é, como aconteceram os diferentes momentos e aspectos na trajetória da reformulação do direito infantil, considerando que esse se dá principalmente através da expressão, participação e divulgação, independente dos meios e  das fronteiras.
          Ao destacar a importância da participação, Imaculada Prieto demonstra sua sintonia com o Estatuto da Criança e Adolescente como uma expressão do direito ao direito através de iniciativas que passam a ser construídas em torno da criança. Várias  crianças, de várias cidades e culturas passam então a fazer parte da cena: a indígena, a quilombola, a especial etc.

          Pensando neste direito universal, que deve valorizar a integração social, levando a criança a participar e a exercer sua cidadania, se consegue atingir outros objetivos, ou seja, a ter direito a outros direitos. Participar, sugerir, criar propostas em sua cidade é um exercício de valorização estratégico que visa superar as desigualdades sociais.
          Um município, portanto, precisa abrigar uma cidade infância e não uma cidade de infância moderna. Somente através da cultura da participação infantil em seus próprios espaços se conseguirá redimensionar esses mesmos espaços de pertencimento social da criança.  Para tanto, é preciso que se permita a participação infantil no diagnóstico de soluções para mudanças nas políticas públicas em sua cidade.                                        

23 de novembro de 2013

O que falar do Centro Cultural Donana?

Mônica Vallim é graduanda de Pedagogia no ISERJ e integrante do grupo Aprender nas ruas.

         Para o grupo Aprender nas ruas, ter o documentário Agora você é índio selecionado para o Festival Globale 2013 foi gratificante. Como a exibição seria em Belford Roxo, ir de trem foi a minha primeira opção de viagem. Uma possibilidade bem agradável, se os trens funcionassem decentemente aos finais de semana. Mas não. Só há horários regulares das linhas nesse ramal durante a semana,  para o povo trabalhar. No domingo, dia que poderia ser utilizado para o lazer e as atividades culturais por várias famílias que lá residem, esse tipo de transporte de massa só funciona até 14h. Esse é o nosso Rio de Janeiro às vésperas da Copa de 2014, segregando cada um no seu quadrado. 
          Restou-me então ir de ônibus. Peguei o 766 para Madureira e de lá peguei o 800 que literalmente dá a volta ao mundo e vai pela via Dutra. Somando ida e volta, fiquei umas quatro horas e pouco dentro de ônibus. Se eu pegasse um interestadual na Rodoviária Novo Rio, em cinco horas estaria no Terminal Tietê em São Paulo. É muito tempo dentro de um ônibus para sequer sair do estado do Rio de Janeiro! E quem mora por lá vivencia esse colapso de transporte urbano diariamente.
            A rua Aguapeí, onde se situa o Centro Cultural Donana, não consta na busca do Google Maps (será que é por ter um nome indígena?). O curioso é que outras ruelas constam. Vai entender o porquê... Logo a rua de um Centro Cultural não está lá... Mas as referências que o pessoal do Donana colocou junto à divulgação do evento no Facebook foram suficientes para que eu chegasse lá sem grandes dificuldades. Mesmo assim, logo que saltei do ônibus e saí da rua principal, confirmei as indicações na primeira birosca aberta que encontrei . Estava tudo certo. Fui com a minha filha, Fernanda Vallim, professora na Escola Municipal Rudá Iguatemi Vila Nova em Nova Aurora, um bairro vizinho mais pobre, também de Piam em Belford Roxo.
             A simplicidade do Donana nos chamou atenção. Uma casa térrea ainda em obras num terreno de esquina e com o muro grafitado. Como não vi movimentação onde pensei que fosse a entrada principal, contornei a esquina e me deparei com uma entrada de garagem semiaberta. Vi algumas poucas pessoas, bati palmas e fui convidada a entrar. Fui recebida por Aline Germano, do Festival Globale Rio, e Érika Nascimento, coordenadora do Cineclube, que me apresentaram às demais pessoas que já estavam por ali.
           Enquanto não começava a sessão do Cineclube, fiquei sabendo um pouco da história e das atividades que acontecem naquele espaço cultural que inicialmente era apenas o quintal generoso da casa de Dona Ana, mãe de Dida Nascimento, presidente do Donana. Nesse espaço, antes da criação do Centro Cultural, também funcionou uma escola de alfabetização de adultos fundada pelas irmãs Severina e Iraci.
             Todas as atividades são gratuitas. Há rodas de leituras para os miúdos, e oficinas de artes variadas como desenho, teatro e capoeira. As sessões do Cineclube têm o carinho especial dos anfitriões, com direito à pipoca, um bolo caseiro daqueles que nos lembram dos mimos doces de nossas avós e algum suco, chá gelado ou refrigerante.
          A sessão começou um pouco depois das 18h, pois alguns convidados se atrasaram e o público também veio chegando pingadinho. A sala de exibição deve ter aproximadamente uns 50m2. Tem uma tela grande, projetor, caixas de som, umas 40 cadeiras tipo escolar, algumas mesas laterais, dois grandes ventiladores e negras cortinas de TNT.
           O pequeno público presente, talvez umas 20 pessoas, era em sua maioria adulto, mas havia uns poucos jovens e até crianças.
           A crítica que faço ao nosso documentário se estende aos demais: a má qualidade do áudio, que nos impõe a colocação de legendas, é um complicador para o público com dificuldades para a leitura rápida. Mas o debate compensou essa falha, pois esclareceu detalhes omissos ou equivocados e encorajou a participação do público.
       Esse bate-papo que aconteceu após a sessão acabou tendo um contorno político, de conscientização sobre as questões denunciadas nos documentários e nos problemas cotidianos do próprio bairro com o saneamento, os transportes, o meio ambiente e o direito à cultura.
          Yoshiharu Saito, um dos debatedores e defensor do meio ambiente, ao cumprimentar Dida pelo cargo de subsecretário de cultura de Belford Roxo, lembrou da necessidade de ocupação de cargos políticos por moradores do local para minimizar esses problemas.
           Iniciativas assim precisam de mais apoio e divulgação para que se multipliquem. São trocas muito ricas e necessárias em nossas pobres periferias, só lembradas em anos eleitorais ou quando acontece alguma tragédia dantesca. Na cidade de Belford Roxo residem em média 500 mil habitantes. Muitos jovens e crianças têm como único lazer a rua ou a TV. Até 2010 não existia sequer uma sala de cinema popular que os contemplasse e fizesse por eles a diferença que o Donana é capaz de promover, envolvendo-os com arte, cultura e consciência política.
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O Centro Cultural Donana surgiu em meados da década de 80, como um espaço voltado para as artes e alfabetização de crianças, jovens e adultos, além de diferentes atividades como exposições e festas com os músicos da Baixada Fluminense. Este cenário – uma casa sem muros e repleta de manifestações culturais e artísticas, localizada no bairro Piam – proporcionou o fomento a uma geração musical que deu origem a bandas como KMD5, Negril e Cidade Negra. A partir disso, Belford Roxo ganhou visibilidade, deixando para trás o título de ‘cidade mais violenta do mundo’, segundo dados da época, fornecidos pela ONU.                                                    
Para visitar o site do Donana, clique aqui
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Ficha técnica do documentário Agora você é índio (20’, 2012),
uma produção FAPERJ / ISERJ / FAETEC
Sinopse
Entre o índio imaginário, o invisível e o histórico, o curta procura entender o índio real no contexto urbano: na feira de artesanato, na escola e no prédio do antigo Museu do Índio, sede da Aldeia Maracanã. Através de imagens, sonhos e entrevistas, identidades se misturam e se redescobrem pelo olhar do outro.

Linhas de discussão
O preconceito contra indígenas no Brasil é gritante e o desconhecimento acerca da sua existência nas cidades é ainda maior. O filme dá visibilidade a essas questões e se reporta aos estereótipos na escola e a necessidade de identificar no indígena um cidadão e um trabalhador que questionam a ordem social excludente.
Palavras-chave: Índios em contexto urbano, Segregação cultural, Educação, Aldeia Maracanã

Equipe
Direção: Bia Albernaz / Assessoria e edição: Jorge Efi / Atores: Dauá Puri e Ricardo Araújo Oliveira / Roteiro: Antonio Pinheiro, Bia Albernaz, Carmel Farias, Carol Granato, Cida Donato, Cris Muniz, Dilson Miklos, Elen Cabral, Fátima França, Patrícia Nascimento, Malu Pinto, Marcia Fernandes, Márcio Salles, Mônica Vallim / Câmera: Antonio Pinheiro, Gilson Bueno e Walter Cecchetto Filho / Música: Marcelo Lion / Produção: Grupo Aprender nas ruas, Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro e Fundação de Apoio à Pesquisa do Rio de Janeiro.

Para ver o filme, clique aqui

A participação da criança na cidade 3 - A favela e a cidade na perspectiva infantil

Márcia Fernandes

                 Nesta terceira postagem da série de postagens que resumem um dia no seminário  "A criança e sua participação na cidade" promovido pelo CECIP, trazemos a perspectiva da criança sobre a cidade e a favela. Consultá-las  foi um grande avanço, pois as contribuições que surgiram após essa escuta trouxeram novas soluções  para se pensar o futuro da  cidade   uma cidade construída para as crianças e pelas crianças.
                  Essa participação da criança nas mudanças da sua cidade também é um conceito de aprendizagem, tanto para a criança quanto para o adulto, que participa dessa mediação social e precisa estar imbuído deste conceito do aprender.
                        Construir práticas para a promoção da criança como cidadã é criar caminhos para que essa cidadania nasça ainda no seio da família. Na verdade, trata-se de  uma construção de educação identitária, pois busca o reconhecimento do pequeno cidadão como sujeito de direitos.
                        Mas como a criança pode participar dessa construção sem que seja manipulada e sem que seus mediadores decidam o que ela quer?  Mais do que isso, sem que se limite ao que se espera dela? Através da escuta de suas ideias.  Esse processo, portanto, não corresponde apenas a um modelo de participação, mas sim a um exercício de ouvir a criança. O melhor modelo de participação reside na tentativa de organização da própria criança com os seus pares, junto a  uma participação direta nas ações implantadas em sua comunidade, seu bairro, sua cidade.
                     Durante as discussões em torno de metodologias, no Seminário, algumas teses foram apresentadas. Uma delas resumiu a pesquisa de doutorado de Beatriz Corsino Pérez, na UFRJ: Noção de Cidade, resultados da  pesquisa realizada em comunidades, a dicotomia: asfalto e favela e o Projeto Criança Pequena em Foco.
                     Sobre a noção de cidade, a autora traz a reflexão de que a criança já nasce numa cidade planejada, ou seja, num espaço construído, onde tanto a criança  quanto  o adulto têm de se adaptar. Essa cidade idealizada  é transformada e modelada sem a   participação ou opinião de seus moradores e principalmente das crianças. A pesquisa de Beatriz Corsino, realizada nas comunidades  Chapéu Mangueira, Santa Marta e Babilônia, na zona sul do Rio de Janeiro, ouviu os relatos das crianças sobre o que elas gostariam que fosse modificado em sua comunidade e o que elas gostariam que fosse conservado. Este momento foi também a oportunidade de conhecer um pouco mais a criança que vive nestes espaços e como elas veem a relação entre asfalto e favela.
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                   O conceito de infância ainda está focado na ideia de criança concebida no século XVIII, no qual se insere a noção de pensamento como um campo universal idealizado em moldes europeus, sem incluir a concepção de evolução, nem situar quem é a criança sobre a qual se fala e qual a sua realidade.
             A infância moderna ainda é vista pelo Estado dentro dos modelos europeus sem as referências específicas, como por exemplo as da cidade do Rio de Janeiro. E o que é mais importante: em relação a este modelo de infância, a criança da comunidade corresponde a uma má infância.
               É urgente, portanto, entender quem é essa criança, assim como compreender que essa infância passou pela modernidade acompanhada de todos os desafios e circunstâncias em seu entorno, enfim que ela existe sim, mas em relação a um conceito diferente do que comumente se propõe. Além disso, é preciso reconhecer que não há nenhum modelo de participação previsto para a criança dentro da cidade.
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                   Logo, a ideia de ação que se propõe é que se faça surgir um amor pela cidade dentro de uma perspectiva voltada para uma infância contemporânea. Tal ação foi pensada no Projeto Criança Pequena em Foco, desenvolvido nas comunidades dos morros de Santa Marta e Babilônia   cujo objetivo foi promover espaços de trocas entre a criança e o poder público. Neste projeto, algumas perguntas foram pensadas para estabelecer estratégias relacionadas ao foco proposto. Algumas delas são: Qual a relação das crianças com o lugar que vivem? Como é a cidade na perspectiva  dessas crianças? A comunicação inicial com as crianças foi difícil, por isso foi criado um passeio fotográfico e se chegou a algumas respostas.
                 A relação da criança com o lugar que vivem é mediado pela visão das crianças de ambas as comunidades de que este é o lugar da famíliaPelas  fotografias, respostas foram sendo construídas. Através dos lugares escolhidos foi possível entender a noção de espaço de família e ao mesmo tempo de espaço construído.
             Na Babilônia, as crianças caracterizaram a sua comunidade como sendo um lugar para brincar. O espaço ali é muito arborizado e o fator “natureza” é importante para o dia a dia das crianças, cujas brincadeiras incluem constantes subidas em árvores. Chega-se assim a um tipo de experiência distinta de outros espaços considerados de  boas infâncias segundo o olhar do poder público.
             Contudo, as crianças do morro da Babilônia reclamaram das moradias  sem estruturas e relataram a perda do  Campinho, que era um espaço de apropriação de brincadeiras como jogar bola e bolinha de gude, modificado pela Prefeitura sem a consulta dos moradores e principalmente das crianças que mais utilizavam o espaço. O espaço foi aterrado e se tornou uma área acimentada!
              A relação com a cidade, ou seja, a perspectiva de cidade é relatada pelas crianças como a do encontro entre a favela e o calçadão (de Copacabana). Este momento é retratado como uma experiência estritamente urbana, de encontro com estranhos que não fazem parte do cotidiano e das vivências dessas crianças segundo elas mesmas.
             Na comunidade do morro Santa Marta, sobre a relação das crianças com o lugar em que vivem, muito foi falado sobre o bondinho ou teleférico, como sendo quente e apertado, e sobre a pracinha da comunidade que possui muitos brinquedos quebrados.
            Para as crianças do Santa Marta, o   conceito  de cidade  está relacionado ao momento de diversão, a ir para o calçadão, poder ir ao shopping e visualizar os prédiosem relação aos quais nutrem um imenso desejo de morarem algum dia.
          Dentre as considerações finais das  pesquisas, a autora destaca a falta de interesse  em ouvir e dar espaço à participação das crianças nas mudanças feitas em suas comunidades, o que reflete diretamente em suas vidas e principalmente em sua infância.

Então, vamos ouvir as crianças! Até a próxima postagem.
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Escute a menina Severn Suzuki na Conferência da ONU por ocasião da ECO-92

12 de novembro de 2013

A participação da criança na cidade 2 - A construção dos Direitos da Criança

                                                                                                                                  Márcia Fernandes
O seminário A participação da criança na cidade (IFCS/UFRJ,20.09.2013)
trouxe duas observações relevantes:
1) a valorização da  participação da criança ao tomar  iniciativas e decisões para a sua própria vida dentro da cidade;
2) uma pergunta reflexiva: Que cidade teremos  para a nossas crianças nos próximos 50 anos?
                                                                                 
        As primeiras colocações foram em torno da construção do direito da criança. Antes de ser uma criança-cidadã, ela precisa ser um  cidadão de direitos e vê-los respeitados. Somente dessa forma ela acreditará que a  sua participação na sociedade tem importância  e que essa participação pode interferir  no planejamento dos projetos da cidade.
          Atualmente,  muitos avanços foram feitos, mas  muito mais ainda  se precisa fazer para que essa  cidade seja pensada  e planejada também para as crianças.
          A construção do direito da criança é algo muito recente. O cuidado com a criança, antes vista  só como  objeto de cuidados e não como sujeito de direitos, foi conquistado a partir de 1945 com a criação do Fundo UNICEF pela ONU após a 2ª guerra mundial. O objetivo da criação do Fundo foi ajudar as crianças que sofreram  com a guerra.  Mas em 1953 a UNICEF se tornou uma instituição. Presente hoje em 191 países, essa é  a única organização mundial que se dedica exclusivamente às crianças. 
        Os direitos da criança foram assegurados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas  esse ainda não era um documento específico para a criança.  Composta por 54 artigos, a  Convenção dos Direitos da Criança só foi criada em 1989.  A partir daí, os avanços em torno do respeito à criança cresceram e tomaram novos rumos.
          Depois, no Brasil, foi criado  o ECA,  o Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990. Durante o debate, os artigos 15 e 16 foram destacados como  os mais difusos pois o primeiro trata  dos direitos à liberdade e o respeito à dignidade;  e o  segundo, traz os seguintes aspectos: o direito à opinião e expressão, à participação da vida familiar e comunitária sem discriminação e à participação da vida política na forma da lei. 
          Também no ECA, o artigo 53, sobre o direito à educação, visa o pleno desenvolvimento de sua pessoa, o preparo para o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho, assegurando-lhe o direito à participação em entidades estudantis. O que chama a atenção é que este artigo abrange mais a adolescente do que a criança pequena.
         Por último, destacou-se o Plano Decenal dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes,  que tem como meta de 2011 a 2020 aumentar a participação da criança na vida política, social, cultural e econômica do país e da sua cidade.

7 de novembro de 2013

A participação da criança na cidade 1

Márcia Fernandes
Esta é a primeira postagem de uma série que sintetizará  os  principais pontos  discutidos no Seminário Criança e sua participação na Cidade, que aconteceu nos dias 20 e 21 de setembro de 2013 no Instituto de Filosofia e Ciências e Sociais/UFRJ.
O Seminário foi promovido pelo CECIP, Centro de Criação de Imagem Popular e pelo Laboratório de Antropologia Urbana do IFCS/UFRJ. Teve a participação de representantes da academia, de movimentos sociais, de Ongs, de organizações comunitárias e do poder público, e também de crianças.

Os principais objetivos do seminário foram:
1)    Discutir o atual processo de transformação urbana na cidade do Rio de Janeiro;
2)    Promover maior participação dos moradores na tomada de decisões para o futuro dos que vivem nesta cidade;
3)    Criar reflexões, promover debates, discutir estratégias  e relatar experiências concretas que possam se  transformar em políticas públicas;
4)    Ouvir as crianças, escutar suas sugestões para uma melhor qualidade de vida dentro da cidade.


Destacarei somente as atividades ocorridas no primeiro dia, 20 de setembro, no qual várias mesas discutiram os temas apontados acima.


Esta série de postagens se estruturará em seis eixos que são os temas relevantes apresentados no seminário:
•    A construção dos direitos da criança
•    A favela e a cidade na perspectiva das crianças
•    Infância e a Cidade
•    Por que ouvir as crianças?
•    Cartografia afetiva
•    Ongs, Instituições privadas, Movimentos Sociais e o Poder Público

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                                                     Por que escutar a criança?
Crianças entre 4 e 12 anos podem ajudar a formular políticas públicas.
Durante o ano de 2012, o CECIP desenvolveu o projeto Criança Pequena em Foco, com crianças das favelas Santa Marta, Babilônia e Chapéu-Mangueira.
O livreto Vamos ouvir as crianças sugere atividades que levantam as sugestões das crianças sobre o lugar onde moram. Essas oficinas são simples e podem ser reproduzidas facilmente em escolas ou em outras comunidades.
Exemplos de oficinas: confecção de crachás (20min); brincadeira Lugares da comunidade (45min); Os caminhos das crianças (45min); Como se brinca na rua (45min) etc.
Para fazer download do arquivo com o livro na íntegra, clique aqui.

24 de outubro de 2013

Guia dos museus brasileiros

O Guia dos Museus Brasileiros já está disponível para consulta e download. Elaborado pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram/Ministério da Cultura), o guia traz dados como ano de criação, situação atual, endereço, horário de funcionamento, tipologia de acervo, acessibilidade, infraestrutura para  recebimento de turistas estrangeiros e natureza administrativa de mais de 3 mil museus já mapeados pelo Ibram em território nacional. Aqui, publicamos o material dividido por região, para facilitar o acesso. Clique para acessar:

Museus da Região Norte
Museus da Região Nordeste
Museus da Região Centro-Oeste
Museus da Região Sudeste
Museus da Região Sul
Museus extintos, incorporados e renomeados, museus em implantação e museus virtuais
Constam da publicação um total de 3.118 museus, incluindo 23 museus virtuais.

23 de outubro de 2013

Lições de etnografia a partir de cinco documentários


Tão difícil desenhar uma paisagem e, no entanto, há quem o faça... Tento desenhar com palavras e às vezes com fotos, imagens que nascem de um enquadramento. Tentarei aqui compor um quadro. Estou em frente ao Instituto de Geociências da Universidade de Vila Real. Infiltrei-me como ouvinte por um dia, isto é, paguei por isso e caro, devo dizer. Minha intenção é simplesmente assistir à I Mostra de Filme Etnográfico. Havia tentado inscrever um curta-metragem (Agora você é índio) realizado com alunos e professores do Instituto de Educação e indígenas da Aldeia Maracanã sobre o choque cultural dos não indígenas quando convivem com esse outro que genericamente chamamos de índio. O filme não foi aceito. Como eu iria de qualquer maneira para Portugal e para o norte justamente, infiltrei-me, atiçada pelo desejo de saber o que faz com que um filme seja classificado como etnográfico.
Lição 1
Depois de assistir o primeiro filme do dia – Aqui tem gente (18’03”, 2013), de Leonor Real – coincidentemente também sobre uma ocupação (tal qual os indígenas no prédio abandonado do antigo Museu do Índio no bairro do Maracanã, no Rio de Janeiro), ensaiei uma primeira conclusão a respeito dessa designação – etnográfico. Pareceu-me que um etnógrafo assume o compromisso de descrever realisticamente uma situação. Acho até que a etnografia (irmã mais nova ou um mero instrumento da Antropologia?) surgiu no mesmo período do realismo e do naturalismo como movimentos literários já que teria como premissa a descrição. No entanto, seria possível também ao etnógrafo recorrer à observação participante, pela qual se permitiria a identificação com os sujeitos observados, tal qual um narrador que para ser mais fiel aos acontecimentos procurar assumir a perspectiva de um ou mais personagens.
Em relação ao Aqui tem gente,  o documentário acompanhava o processo de desocupação de uma pequena favela habitada por negros vindos das antigas colônias portuguesas na África e por ciganos, grupos momentaneamente identificados pela grave situação que enfrentavam. Mas a personagem central era Rita, a própria observadora, apresentada como uma ativista, uma liderança mediadora entre o mundo dos brancos e o dos desgraçados. (Ela seria aquilo que Gramsci classificou como intelectual orgânico.) A câmera apenas presenciava as cenas. Rita, por recusar o papel de heroína, não desempenhava o papel de uma personagem clássica, nem moderna tampouco, por não expor a sua subjetividade e seus conflitos. E esta foi a lição 1.
Lição 2
Quanto ao vídeo seguinte, A minha família na luz (18', 2011), de Fabienne Wateau – um curta-metragem que brinca com o intrincado sistema de parentesco exposto por membros de uma família, uma grande família em uma pequena cidade, a pedidos de uma jovem de 15 anos – a lição possível é: filme etnográfico tem de ser feito por antropólogo (ou cientista social). Por conhecer a teoria, o tema, a vibração do antropólogo pela estrutura do parentesco, a diretora pôde brincar com a questão. No entanto, durante o debate final, Fabienne afirmou que sua intenção não era fazer um filme sobre o tema, nem pretendia ser fiel à teoria, mas simplesmente (e aí vem a etnografia) mostrar algo que se fez evidente em sua aproximação com os moradores da tal cidadezinha. Sua intenção era, ao conhecer o parentesco de uma determinada família, estabelecer uma rede de contatos e facilitar a sua pesquisa. A entrega do papel de condutora à adolescente Vânia foi realmente inteligente. Como moradora da localidade, sabedora de todos os códigos de abordagem e conhecedora de todos os endereços ela era a mediadora ideal. Podia levar a pesquisadora a todas as casas de seus muitos parentes, abrindo-lhe as portas da intrincada rede de informantes com a seguinte pergunta: “a senhora aqui quer saber o que a senhora (ou senhor) é minha (ou meu). Por que somos parentes? Qual o nosso grau de parentesco?” Bem interessante e simples. Em geral, os entrevistados conheciam até a terceira geração e, em resposta à menina, desfiavam os elos da parentalha, com frases como “sou filho do seu tio-avô então sou seu primo de segundo grau” (era mais complicado do que isso). Impossível acompanhar a lógica estruturante do parentesco com suas diferentes designações e conclusões traduzidas pelos termos apropriados. O resultado, porém, era divertido. Fazia como um bordado com a língua e com a linguagem armada pelas relações de parentesco – tema muito caro aos antropólogos.
E esta foi a lição 2: um filme etnográfico se acerca de temas da antropologia de um modo mais ou menos focado, isto é, abre o leque para temas correlatos ou centra-se em uma questão muito específica, e – tal qual o primeiro filme – de maneira isenta, eminentemente descritiva. Assim, interpretações são possíveis mas a partir de uma exposição direta, com o mínimo de ambiguidades.
Lição 3
Do terceiro filme, Voices from the tundra – the last of the yukagirs (66', 2013), de Edwin Trommlen, a lição que fica pode ser resumida em duas palavras: “pressa nenhuma”. Mas poderia ser também “incrível empenho” ou “esforço descomunal”. O filme acompanha a viagem de uma linguista, Cecília Odé, uma holandesa com mais de 45 anos de estudos das línguas eslavas que sofre de um câncer nos pulmões e que aproveita um período de melhora para revisitar os yukagirs na gélida tundra. Com a incrível paisagem toda branca como pano-de-fundo e sob uma temperatura de cerca de menos de 20 graus, presencia-se um tipo de vida em extinção, levada por falantes de uma língua que por muito tempo foi proibida pelo governo soviético. A relação de Cecília Odé –  a narradora do filme – com os yukagirs é profundamente amorosa. Não se nota de jeito nenhum qualquer distanciamento entre a etnógrafa e a cultura pesquisada. As pessoas que nela nasceram são mostradas como co-pesquisadoras, sendo Cecília aquela que faz a ponte entre eles e os fundos que custeiam a publicação de livros e a edição de CDs em sua língua, de modo a prestar um serviço de preservação e de divulgação não só em outros países como no próprio lugar onde canções, hábitos e vestes tradicionais tendem a desaparecer. (Estamos pois diante de uma variante mais cultural do que política do já citado intelectual orgânico gramsciano.) O filme não tem pressa nenhuma para acabar. Toma um pouco mais de uma hora e o público que o assistia, muito pequeno, como uma minoria perdida no meio da agitação de um congresso com cerca de 500 inscritos, mingua-se ao ponto de, no final, contar apenas com umas dez pessoas na plateia. Mas isso não parece importante, as imagens são bonitas e envolventes, com muitas renas, muitas vestes coloridas e sobrepostas, faces queimadas pelo gelo, risos, cantos e afagos, ainda que a narradora de onde sobressai toda essa riqueza tivesse pele clara e olhos azuis. Ela parece ser a personagem principal. Será isso uma distorção, uma contingência (já que o filme se dirige a um público mais próximo ao que ela representa) ou a representação de um exemplo de coragem e desprendimento?
Antes das lições finais
Ainda nesse dia, à noite, a fim de aproveitar até o final minha precária participação como ouvinte dessa Mostra, fui a uma sessão na qual dois curtas seriam exibidos num teatro um pouco afastado do centro de Vila Real. O lugar, recém-construído, exalava a nada. Era mais um desses prédios feitos com muito dinheiro, com espaços amplos a perder de vista onde não se vê viva alma. Tanto que, ao chegar ao mesmo tempo que um jovem e duas moças, parecíamos sermos os únicos que optaram por abandonar a agitação dos antropólogos em restaurantes e em hotéis da cidade para assistirmos à sessão programada. Mas não, ao entrarmos na sala de exibição, outras pessoas já estavam lá, ouvindo um artista que falava sobre o modo de fazer do artista quando em relação com uma comunidade, isto é, quando uma comunidade é o seu foco. Sua fala, que introduzia a exibição de um curta performático com uma figura de mulher  fantasmagórica a vagar por uma das muitas aldeias desertificadas em Portugal, estava no final. A atmosfera do filme era sinistra. De fato, exalava dela um abandono e ecos de um passado extinto, tristemente extinto. Na última cena, no entanto, a mulher que antes aparecia o tempo todo envolta em uma capa negra, aparecia subindo degraus no meio das ruínas, ascendendo rumo a um lugar inexistente, toda vestida de branco. Ao acender as luzes, o artista apresentou-se novamente para responder possíveis perguntas, mas o silêncio foi fatal. Creio que a plateia estava preparada apenas para ver filmes etnográficos. E aquele era um filme artístico... Um pouco constrangido, o artista escapou rapidamente e então eu soube – ao apresentarem a exibição dos dois curtas programados – que aqueles jovens com os quais entrei e que se sentaram ao meu lado, eram os diretores dos filmes.
Lições 4 e 5
O primeiro deles, Este é o meu cabelo (2012), de Hellington Vieira, durava apenas onze minutos. Tinha sido o trabalho de conclusão de um mestrado na Universidade Nova de Lisboa. Parece que há ali muita pesquisa em antropologia, em cultura, em literatura tradicional. Então, quando o filme começou, a impressão que me deu é que a sua linguagem se assemelhava a de um filme de ficção. É importante frisar o verbo “se assemelhava” aqui, pois, posso estar enganada, mas um filme etnográfico mantém, em relação a essa linguagem, uma distância estratégica; seu compromisso maior é para com a ciência, ainda que ela possa ser oxigenada por um fazer no qual as fronteiras entre sujeitos e objetos tenham sido borradas pelo reconhecimento de um protagonismo daqueles que antes eram vistos como objetos de estudo e da necessidade de constante questionamento e deslocamento das fronteiras onde os pesquisadores costumavam se colocar em situação de suposta neutralidade. O filme Este é o meu cabelo não tem narração. A personagem principal, uma moça da Guiné-Bissau, estudante em Coimbra, aparece na tela a esquentar água, a lavar roupa, a estendê-la no varal. Ela é magra, negra e sua roupa não traz nenhum traço distintivo. Então, é claro, a observação recai sobre o seu cabelo. Aquele era o seu cabelo: curto, alisado, um pouco arrepiado, sem estilo definido. De vez em quando, ela se encaminhava até a câmera e a endireitava. Depois, durante o debate, ficamos sabendo que a moça trabalhava num salão de cabelereiro e que o diretor, por não poder filmar lá dentro, havia emprestado a câmera para que ela mesma fizesse a gravação. Contudo, ela escolheu se filmar na lida doméstica. Intercala-se a essa cena, uma outra que registra a chegada da moça em um pátio onde ela irá colocar apliques de cachos louros e castanhos dourados. Enquanto ela está lá sob os cuidados de uma e depois de mais uma moça, ambas também negras, a câmera grava o seu depoimento – quem é ela, quais os seus planos, entremeados de comentários acerca da sua recusa em relação à cultura europeia. Para namorar, por exemplo, só aceita negros pois com brancos o clima parece ser, segundo suas palavras, de um curso por correspondência. Enquanto isso, esticando-se de lá, puxando-se de cá, aos fios negros de seu cabelo vão sendo enrolados os cachos de fios de seda. Ouve-se então o comentário central de seu depoimento – com o tempo, ela tinha percebido que jamais seus cabelos seriam lisos como ela acreditava poderem ser um dia. Enfim, reconhecia, aquele cabelo arrepiado que ela procurava ocultar é que era o seu cabelo.
Sem querer apreender por ora uma lição deste filme, adianto aquele que foi o último filme do dia e da minha participação como ouvinte nas plenárias promovidas ao final das sessões:  Apanhados na rede (58'10", 2012), de Amaya Sumpsi. Esse aproxima-se em alguns pontos com o dos yukagirs, comentado anteriormente. A narração, antes evitada pela diretora, de acordo com depoimento seu durante o debate no final, acabou sendo feita por ela mesma, e em espanhol, sua língua, apesar do filme se passar em uma pequena baía, Porto Formoso, nos Açores. Nada de distanciamento e também pressa nenhuma. Parece que sua primeira aproximação com o lugar e com pessoas da comunidade pesqueira, quase que exclusivamente masculina, se deu em 2009 ou 2010. Em quase uma hora, o filme testemunha as mudanças na atividade pesqueira mas sobretudo o que permanece e subjaz na dinâmica de transformação da paisagem em relação à prática dos pescadores. O clima é poético, a voz da narração, pela entonação e pelo texto, parece segredar a importância dessa convivência principalmente para a diretora do filme. Desfilam personagens, depoimentos, pacientemente colhidos e editados, tomados e obtidos graças a uma relação de afeto estabelecida entre a pesquisadora, se assim se pode chamar a diretora, e os pesquisados que, na verdade, são os condutores do roteiro que, na verdade, é ditado pelo curso da própria vida em sua realidade cotidiana ao longo de dois anos. Amaya, sabe-se depois, não é formada em Ciências Sociais. Sua formação é em Cinema, mas o que a fez ingressar num mestrado na área de Antropologia foi o fato de estar perdida entre muitas horas de gravação, sem saber como costurá-las e finalizar o seu filme. Por sua vez, Hellington diz que também sem saber como transformar suas ideias em um filme, recebeu de sua orientadora a indicação de que o concebesse como se ele fosse um filme de ficção. A lição final, portanto, refere-se a essa difícil tessitura entre a linguagem etnográfica tradicional e aquela que se vale dos ganhos do cinema de ficção. Ou seja: todos gostamos de histórias, personagens, conflitos e resolução de conflitos. No caso desses dois filmes, há também um óbvio aporte do cinema de arte, principalmente o primeiro (já que Hellington diz ter se inspirado no último filme de David Lynch, “Inland Empire”), com enquadramentos, modos de narrativa  e edições inesperados  que mostram mas não explicam, o que contribui para que o clima de abertura e de múltipla interpretação da poética no cinema possa ser absorvida também pelo filme etnográfico.
Possível conclusão
Talvez, e é bom frisar essa palavra, talvez o que defina esse tipo de filme, em oposição ao filme de ficção, seja a origem das imagens. Assim, num filme etnográfico, o imaginário a ser focado – apesar do pesquisador poder se permitir uma aproximação mais forte e afetiva ao longo do processo – deve vir de um outro, de uma outra cultura, de um outro personagem, de um outro lugar, de uma outra língua. Ao diretor caberia apenas testemunhar esse outro que se desvela, seja assumindo-se como ativista, pesquisador, estudioso, diretor de arte ou mediador, a fim de que esse outro possa ser o mais inteiro possível em sua alteridade. 
Bia Albernaz
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"Ma parenté au village" (O filme de Fabienne Wateau está acessível no site do CNRS - Centre National de la Recherche Scientifique)
O trailer de Voices from the tundra – the last of the yukagirs encontra-se no You Tube - http://youtu.be/KfUjw15oyQE