No filme "O espelho" de Jafar Panahi, o espectador presencia a reviravolta no roteiro que conta a epopeia de uma menina, cuja mãe não apareceu na saída da escola, em sua tentativa de voltar sozinha para a casa. O inesperado acontece quando a pequena atriz, cansada de "brincar de ser atriz", resolve definitivamente parar de atuar. Sua decisão é irrevogável e inegociável: quer voltar para a sua casa. Recusa-se a conversar com o diretor e, aos berros para uma mulher que faz parte da equipe e parece ser a responsável por ela no set de filmagens, afirma conhecer o caminho de volta e querer ir embora, sozinha. Enquanto isso, tudo está sendo filmado por uma câmera de prontidão, em virtude provavelmente da realização do making of do filme. O toque de ousadia do cineasta e de sua equipe é dado pela decisão de deixar a menina ir, acompanhando-a de longe, sempre filmando-a, em seu retorno à casa.
Como ela sai intempestivamente do set, pondo-se a caminhar com passos firmes, leva um microfone de lapela, e esse registra os sons que a rodeiam e grava os diálogos que ela trava com transeuntes e com um guarda. São conversas, vozes diversas, ruídos da cidade de Teerã, em meio a um trânsito caótico, avenidas e largas ruas de mão dupla, lotadas de gente e de carros, de ônibus e de veículos de lotação. Custa-se a crer que o que então passamos a observar esteja mesmo sendo documentado em tempo real. A precariedade dos recursos, no entanto, reitera essa perspectiva. Aquilo que vemos está acontecendo "de verdade". Em alguns ângulos, em diversos momentos, perde-se a menina de vista, por exemplo.
De fato, a pequena atriz enfrenta a cidade de modo quase idêntico à personagem que interpretava e que assistíamos nas sequências iniciais do filme. Há cenas praticamente iguais, como a da cabine telefônica, dentro da qual a menina tem de fazer uma escalada para chegar até o telefone pendurado no alto, e com grande esforço, equilibrando-se, conseguir ligar para a sua casa, a fim de tirar dúvidas quanto ao itinerário com o irmão, já que a mãe não se encontra. Na ficção e na realidade, os adultos na rua comportam-se ambiguamente. Há manifestações de desvelo e preocupação com a menina perdida, mas também de pressa em despacha-la e de indiferença.
De lado de cá, nós – público ocidental – estranhamos toda a situação. A língua, as roupas, as relações adulto-criança, criança-cidade, reforçam essa sensação de estranhamento. Por um lado, parece incrível que se deixe uma criança caminhar sozinha no meio de tantos perigos reforçados pela falta de sinais de trânsito, de travessias de ruas super movimentadas, de homens, sejam eles motoristas, transeuntes, guardas ou vendedores ambulantes; por outro, a situação parece algo familiar, já que também existem inúmeras crianças soltas na cidade do lado de cá. Em nossos pensamentos, assalta a desconfiança de que em cada homem com quem a menina conversa possa existir um pedófilo, um bandido.
Mas não, nada desse teor acontece. O sofrimento da menina vem mesmo do medo, da insegurança, da sensação de solidão e abandono, inerentes à cidade, tal como ela normalmente funciona. A questão importante em toda essa história não reside portanto na narração de acontecimentos espetaculares, que chamariam a atenção da mídia, mas da situação especular que se apresenta sem premeditação e de modo gratuito no cotidiano.
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Se nos voltarmos então para uma outra situação – os reflexos entre as imagens projetadas por um eu-branco e um ele-índio/negro
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o que é possível concluir? Coloquemo-nos como aquele que acompanha os movimentos de um cidadão singular, morador da cidade do Rio de Janeiro, sobre o qual ficcionamos uma vida cheia de obstáculos, aflitivos e sofridos.
A reviravolta acontece quando nos apercebemos que, no esforço de imaginar esse outro no contexto urbano, dimensionado para a perpetuação de uma cultura que o ignora, nos abrimos para a escuta do que a imagem diz,
e para a realização do imaginário.
Porém, não tendo sido brindada com uma situação similar ao do diretor iraniano (ou talvez não tendo a acuidade para percebe-la), ou seja, não podendo comprovar a provável identidade entre o imaginado e o vivido, registro momentos em que a oportunidade pode surgir, na interação com cidadãos singulares em seu contexto cotidiano.
Reconheço-me na imagem de uma mulher frente ao espelho à procura de um caminho, a refletir um apanhado de desejos flutuantes, indefiníveis e múltiplos, referentes à possibilidade de mostrar uma outra cultura, um outro olhar, outros valores, sentimentos, percepções.
Essa mulher precisa deixar de se limitar em ser um corpo dado, acabado e padronizado por uma cultura que invisibiliza cidadãos indesejáveis, para ser um espelho de prontidão, como uma câmera pronta para filmar o inesperado, a reviravolta. Ou seja; depois da recusa de continuar sendo uma atriz e de representar um roteiro pré-definido, a mulher retorna em direção à casa.
Onde fica essa casa? Na linguagem, que aparece pelo andar, falar, dizer. E no que se aposta afinal? Que essa linguagem confirme a presença tangível do que se imagina, ou pelo menos, que ela confirme a força da imaginação. Parodiando Descartes, ao imaginar, existe-se (sob uma multiplicidade de modos de ser).
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Indiara com sua maquiagem e figurino de parteira, pronta para a gravação da novela Uga-uga |
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A questão que se impõe é o que se imagina agora. O desafio está em imaginar, por exemplo, uma cidade acolhedora não só de desejos de governantes, comerciantes, investidores, motoristas e consumidores. Tal qual a menina do filme "O espelho", de Panahi – que, meio perdida na cidade e com base em detalhes provenientes de lembranças, fragmentos de sua memória dos lugares, procura sua casa – sabemos que para existir um recanto bom de habitar devemos lembrar dele, em meio ao caos onde circulamos, na certeza de que o natural é isso mesmo: as ruas tomadas por carros, ocupadas por trabalhadores ou desocupados, excluídos a bem da continuidade do fluxo, do espetáculo.
Bia Albernaz