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3 de outubro de 2013

Professores na rua - corpos como quadros-negros

          Sou professora e dou aulas no Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro. Um Instituto que forma professores. Por isso, não posso ficar calada nesse momento, quando professores da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro são surrados por Policiais Militares, sancionados pelo Prefeito da cidade e barrados na Câmara dos Vereadores. Considerando, em primeiro lugar, que o meu foco não é a escola mas o que se aprende nas ruas, aproveito para comentar um pouco da minha experiência como professora formadora de professores.
          O que me faz escrever aqui também foi a sensação, ao terminar de ler a coluna da Cora Rónai na edição de hoje de O Globo (o que fazer? Não há diários confiáveis no Rio e essa leitura facilita a conversa comum), dois dias depois do sufoco e surra que os professores receberam, culminando com a aprovação de um plano de carreira concebido segundo os moldes do autoritarismo político, tradição brasileira, ou seja, sem consulta aos maiores interessados.
          Cora Rónai fez uma crônica muito sensata, clara e engajada. Está com os professores e não abre. O jornal, aliás, ainda que a primeira página, como sempre equivocada em seu foco, lastime sobretudo os estragos materiais em guaritas de ônibus e agências bancárias, decorrentes da batalha campal ocorrida no centro do Rio, está salpicado de acordes dissonantes que conseguem enxergar a tragédia de uma cidade (de um país, de uma República) na qual professores que reivindicam melhorias em suas condições de trabalho sejam alvo de balas de borracha, ameaças com armas de verdade, spray de pimenta nos olhos e outros artefatos paramilitares.
          Mas não quero falar do que aconteceu naquele dia especificamente. Há inúmeros testemunhos impressionantes disponíveis na rede. Preciso dizer dessa minha experiência como professora que forma professores a partir de um pensamento que me ocorreu ao terminar de ler aquela coluna no jornal: quem, hoje, escolhe ser professor não o faz movido pelo desejo de ser bem-sucedido, no que se refere à noção comum de subir na vida pelo ingresso em uma carreira segura e reconhecida socialmente. Em geral, e isso fica patente nas rodadas iniciais de conversa com os calouros do curso, quando apresentam suas motivações ao escolher a Pedagogia, o tom é militante, às vezes romântico, às vezes retórico, mas os alunos de algum modo pressentem e assumem como um pré-requisito que, para serem professores e exercerem com integridade esse papel, terão de lutar, remar contra a corrente. São idealistas e ao mesmo tempo materialistas históricos. Em suas trajetórias acadêmicas, uns se manterão cindidos e, mais ou menos conscientes, alimentarão o monstro. Outros, se fortalecerão com leituras, conceitos e capacidade de articulação entre a sua experiência nos aparelhos ideológicos do Estado (velho jargão marxista) e os seus desejos, aprendendo a argumentar e a manejar as armas acessíveis como parte de um coletivo.
          Durante essa campanha reivindicante mais recente, muitos dos alunos formados no Instituto estiveram presentes, já como professores. Seu perfil batalhador, já então forjado pela crítica às práticas privatizantes das redes públicas de educação, fez com que eles não hesitassem em vestir a camisa dos manifestantes e que fossem às ruas e às assembleias, engrossando o levante. Por inúmeras vezes, curti no Facebook as fotos e impressões postadas por eles, esfuziantes no exercício desse papel perfurante e histórico.
          O sentimento de fazer parte da História como elo dessa corrente se avivou em mim. A satisfação de ter contribuído com um mínimo que seja nessa luta contra o protagonismo de uma classe político-governamental apodrecida, doentia pela sua recusa e ao mesmo tempo pelo usufruto da coisa pública, me dá ânimo para apresentar alguns motivos que corroboram com a continuidade desse combate:
          - a exploração do trabalho de estagiários em sala de aula no ensino básico das escolas públicas, em um programa do governo Paes, com a secretária Costim, que - ao invés de investirem em seu corpo docente - o substitui sutilmente por alunos em formação e de passagem, com a conivência de muitos professores e especialistas de educação;
          - a enxurrada de leis politicamente corretas sem respaldo na realidade a fim de que elas possam ser aplicadas a contento como, por exemplo, aquela que obriga professores a inserirem no currículo escolar elementos da cultura e da história dos indígenas no Brasil sem o menor preparo para isso, resultando, no mais das vezes, em folclorização, erros crassos, reducionismos e mais preconceitos;
          - o acúmulo de funções paraeducativas na lida diária do professor a fim de substituir a família e suprir carências sociais, afetivas e alimentares, e a diminuir o apartheid cultural, provenientes de um sistema político paternalista que concede benefícios em caráter pontual e de forma manipuladora, sem assimilá-los como direitos;
          - o descompasso entre o saber escolar e o do resto do mundo, o que torna a frequência diária e obrigatória naquele aparelho chamado escola um suplício tanto para alunos (principalmente os adolescentes) quanto para os professores instados a preparar os estudantes e a si próprios para provas e avaliações como atividades-fim;
      - a incongruência entre o exercício docente e o tempo e os recursos disponíveis para a continuidade de seus estudos, cronificando o anacronismo dos professores e da escola, e frustrando-os sobretudo em seu desejo de ensinar pois, já é mais do que sabido, só ensina quem aprende;
          - o desprezo, a sensação de abandono, o desrespeito, as palavras são muitas mas ainda assim fracas diante da tentativa de definir o sentimento de perplexidade que nos assalta ao adentrar a maioria dos prédios escolares, pela sua sujeira, as camadas de pó sobre paredes de cor de burro-quando-foge, as bibliotecas às moscas, os babadinhos insistentes, o comércio complementar, as secretarias abarrotadas de papel, os arquivos mortos, enfim a falta de cuidado como lição constante e subliminar concedida a todos os usuários da escola.

          Assim termino esse depoimento feito antes que o vento varra a lembrança de um dia fatídico em que os professores foram às ruas para brigar, fazendo dos seus corpos o quadro-negro.
Bia Albernaz 
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Para ler a crônica da Córa Ronai (Brasil, educação zero) clique aqui.

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