Bia Albernaz
Ontem, na Aldeia Maracanã, ao final de um ótimo dia de
filmagens, o casal Urutau e Potira Guajajara nos convocou para uma roda de
despedidas. Nos convidou a ritualizar nosso encontro e nossa partida. Nos
colocamos em torno de uma fogueira simbólica, um tronco com grafismos vermelhos.
Com um leve sorriso nos lábios e nos
olhos, Guajajara começou a falar da dor indígena, enquanto Potira falava às
mães. Ela dizia que aquele tesouro não pertencia a uma só raça, nem a uma ou
outra etnia, que ele era de um povo só, formado por nossos filhos. Em dueto, os
dois cantavam o amor. Entardecia. O céu estava vermelho. Ao lado, o perfil do
Maracanã, monstro devorador? Maracanã é um pássaro. Entoamos e dançamos com
Guajajara dois cantos, um da arara amarela e outro do beija-flor. Quem pode com
tanta candura? Por que não se entregar à beleza e dizer sim às criaturas todas,
que somos nós em comunidade?
Talvez seja preciso interromper o relato para refletirmos os
elos dessa corrente.
Sou uma escritora ou pelo menos faço força para isto.
A literatura e a poesia são meus óculos. Por isso, me inquietei, quando Guajajara nos
convocou, a todos os visitantes, a escrevermos sobre aquele lugar e sobre a luta para mante-lo em funcionamento
como um Centro de Cultura Indígena, ainda que em ruínas e sob o abandono
governamental. Não pude deixar de fazê-lo, de escrever, de buscar
espalhar por aí a notícia de que aquele lugar ameaçado não pode simplesmente
morrer. Essa morte, em prol de não-sei-que interesses medíocres, não deve
acontecer. Corre a notícia de que o governador já se declarou a favor da demolição do prédio. Mas, diz Guajajara, a Rede espalha
boatos. Ela cria realidades virtuais. A Rede tem poder. Usem a Rede para
espalhar a notícia de que a Aldeia Maracanã é um lugar de todos, da nossa
cultura, de nossos povos, dos originários.
Esta escrita responde a um chamado.
De um modo breve, relato a minha experiência. Sempre me
interessei pela arte de comover outras experiências, de fazê-las reverberar,
converterem-se em outras, numa cintilação constelativa. A comoção que senti na Aldeia
Maracanã converte-se aqui em voto pela conservação do prédio que já foi o Museu do
Índio, mas não só do prédio, mas de toda a área incluída no mesmo ato de doação
dessa terra à causa indígena. (A história do lugar é longa e não daria para
conta-la aqui.)
Por que ainda lutamos por propriedade? Nossa legislação às
vezes parece caduca, escrita para a eficiência de um regime que combina conservadorismo
colonial e destrutivismo progressista. Se não existe, é preciso criar uma lei que legitima a apropriação
congregadora, e não segregadora.
Não escrevo leis. Especificamente, nesta história, escrevo sob
a força do inesperado.
Meu campo de estudos na educação é a cidade. Cidade. Favela.
Trânsitos, fluxos, praças, muros, ruas, destructos, constructos, ininterruptos.
Com um projeto sobre a aprendizagem nas ruas, procuro
realizar gestos que ajudem a romper a barreira entre a escola e a cidade.
Visualizo canais, canalículos de respiração mútua. Mas sei da minha fraqueza,
preciso de companhia de quem busca o mesmo, um modo de trazer arte à educação,
um sentido artístico no exercício da docência. Foi assim que, inesperadamente,
a professora Cida Donato me fez o convite, de trabalharmos juntas num projeto
na Aldeia Maracanã com o Urutau Guajajara. Cida acabou em um outro caminho e eu
me vi, de repente, frente a frente com indígenas no espaço urbano.
Encenou-se uma dança de espelhos entre “eles” e “nós”, porque
logo me pus no coletivo. Isso é comum, ao ouvi-los. Sou parte de uma comunidade
por vir.
Na Rede, é preciso abrir buracos, tanto quanto delimita-los.
Pela Rede, colhem-se e espalham-se sementes de texto que germinam em dialetos brotantes, pela força
de um eco autoalimentador e labiríntico. Este texto é uma semente de textos.
Joga-se na Rede como uma voz, da qual às vezes só se escuta parte – o começo ou
o fim, ou uma continuação da Roda compartilhada com o povo na Aldeia Maracanã.
Ruínas. O Rio de Janeiro poderia inaugurar um novo parque
das ruínas. Atualmente, são os indígenas os cuidadores dos nossos parques e
ruínas. Indígenas que perambulam, como nós. Somos originários, nós também. Podemos
ser também da luta. Seres da utopia? Da ilusão? Da fantasia?
Não sou praticante, nem adepta de nenhuma religião. Renego
qualquer interferência da religião na política. A religião é uma fantasia
também. E vice-versa. A fantasia também é uma religião. A ciência, festejada
com a descoberta da chamada partícula de Deus, também pode ser religião, ou
fantasia. O que o encontro com a Aldeia Maracanã me propõe não é nada disso; é uma
revolução. E não se pondera a aceitação do desejo de uma revolução. As cartas
estão na mesa, ou melhor, nas ruas.
Ontem (que dia cheio!) passei pelo colégio Pedro II, onde li
numa faixa que os alunos estão em greve por amor à educação. Não acredito mais
em nenhum discurso à favor da educação. Nem mesmo o mais belo. Não acreditem no
meu, caso daqui se exale algum proselitismo, alguma outra intenção diferente da
literária. Sou poeta, professo a poesia e, se não posso, poetizo a profissão. Mas
também e por isso mesmo sou professora, e habitante dessa cidade, cidadã, e
educadora, mãe, mulher, descendente de imigrantes ibéricos, de fantasias e sabe-se
lá de quantos golpes. É, portanto, na qualidade de escriba que passo e encerro
este texto, novamente com a fala na Roda, ao final do dia de ontem, um dia
intenso de gravações e projeções de imagens nas paredes em ruínas do antigo
prédio do museu do Índio.
Levem os equipamentos, as mochilas, as sacolas. Guajajara e Potira nos convocam. Respondi com um tímido agradecimento pela
hospitalidade (foi um verdadeiro milagre da multiplicação dos peixes nas folhas
de bananeira). Um dia na Aldeia se encerrava. Alguns ainda ficaram para fazer
grafismos com jenipapo nos braços. No próximo encontro, vai haver contação de história. Talvez a da arara amarela. E há o
mercadinho, onde se falam várias línguas e pode-se saber da história de várias
tribos, etnias. São mais histórias do que as de Roma. São caminhos que nos
levam a essa e a outras cidades possíveis.
Agregando outros Seres da utopia, da ilusão e da fantasia.
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