Releitura de "Eu tomo a conta do Mundo", de Clarice Lispector
por Leticia Coelho
Sou uma pessoa muito ocupada: tomo conta das cores. Tomar conta das cores é uma função que me foi dada, sem nem ter sido pedida. Talvez isso aconteça porque identificaram em mim um potencial visual altamente apurado pelas lentes dos meus óculos que provocam - em minha retina - ironia, independência e vontade de dar vida às coisas segundo as minhas aspirações.
Todo dia preciso assumir o meu trabalho pois, apesar dos sonhos e flashes também possuírem certo grau de cor e provocarem um transe eterno, a verdadeira liberdade consiste em constatar plenamente a luz: é preciso abrir os olhos.
A primeira tarefa do dia é difícil porque o despertar emite um conflito diário e distorcido em relação aos objetos que insiste em me atrapalhar. Mas é preciso começar, e sozinha. Penso em desistir, mas as cores... ah, as cores não me permitem.
Olho para o abajur na frente da cama que irradia uma luz rosa e me pergunto: o que seria do abajur se não fosse a luz? O que seria do retrato na parede, se as cores da paisagem não tivessem sido minuciosamente espalhadas ali?
Lembro ainda que os objetos são dotados de liberdade, pois sua identidade é tão memorial que o azul da colcha jamais será o azul da cortina. Diante disso, me vejo pensando no trabalho de um Outro, mas volto rápido a me lembrar do meu próprio trabalho, as cores.
No metrô, vejo as cores do tempo. Finalmente, posso contar com a ajuda das pessoas, que apresentam as suas cores como em um espetáculo. O rosa do blush se destaca, escondendo a noite mal dormida e a presença de mais de doze horas em prédios frios. Em outros casos, denuncia a ausência do espelho.
O amarelo também se eleva a uma condição surpreendente. Sozinho, é difícil de lidar; acompanhado ele tem vida, é como aquelas pessoas que sempre precisam de companhia para estar vivos...
Enfim, recebo a primeira aprendizagem do dia: descubro que as cores são como as pessoas. Há cores de luz e cores de pigmentos; há pessoas de luz e pessoas de pigmentos, que refletem as condições a que são submetidas.
E novamente penso sobre o trabalho do Outro.
Observo que, na Quinta da Boa Vista, há um verde muito implicante, que insiste em saturar os prédios, só para aparecer mais um pouco. Fico com pena dele, assim como os pássaros que sobrevoam as passarelas e caçoam em coro dessa briga que é difícil de ganhar.
Penso no que acredito enxergar e verdadeiramente me fascino com quem precisa construir um eixo especial de compreensão da vida porque a compensação, nesse caso, é poder enxergar elementos aparentemente semi-ocultos.
Daí, continuo o meu trabalho até que possa finalmente me despedir no final do dia. Aguardo o recebimento do meu merecido salário, conquistado através de lutas implacáveis com as barreiras sobre os meus olhos e também por não permitir que, por mais um dia, as cores fiquem estagnadas. Entendo enfim, a minha maior glória é ser enganada.
Fotos: BiaA. e JMGLA
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