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16 de dezembro de 2013

O livro urbano do profeta Gentileza virou pó?

   Mônica Vallim
          Há 52 anos, na antevéspera do Natal de 1961, seis dias após o trágico incêndio do Gran Circus Norte-Americano, onde morreram mais de 500 pessoas, a maioria crianças, José Datrino, um paulista nascido em 1917, aos 44 anos, sentiu-se de alguma forma tocado ou incomodado por Deus. Deixou todos os seus bens materiais para seus familiares, e resolveu fazer canteiros de flores e hortaliças nas cinzas do circo em Niterói, que passou a ser conhecido como Paraíso Gentileza.
Fonte: http://www.projetovip.net/0411.htm
          Em meados da década de 70 tornou-se o andarilho barbado de bata branca, com estandarte erguido nos trens e barcas pregando a sua máxima GENTILEZA GERA GENTILEZA. Mas segundo pessoas que conviveram com ele, o profeta era um pregador moralista, e algumas vezes até mesmo agressivo com os transeuntes, por ser muito crítico às minissaias da época, precisando em certas ocasiões ser contido por policiais.
          Na década de 80 virou uma espécie de personalidade carioca quando decidiu pintar murais artísticos nas pilastras do viaduto da Perimetral, no Caju.
          Pintou um total de 56 pilastras que constituíam um verdadeiro livro urbano numerado no principal acesso rodoviário ao Rio de Janeiro.
          Gentileza escolheu pilastras na zona portuária próximas à Rodoviária Novo Rio, onde se dedicou a escrever suas mensagens de amor à natureza, gentileza ao próximo e críticas ao “capetalismo”. Seria um louco e fanático o nosso profeta?
          Segundo o filósofo Giorgio Agamben, o capitalismo é uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e o objeto é o dinheiro.
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          Após a sua morte em 1996, devido às pichações a Prefeitura resolveu pintar todas as pilastras de cinza, mas houve uma mobilização de acadêmicos e artistas para que as pilastras fossem restauradas. Em 1999 esse movimento deu origem ao projeto "Rio com Gentileza" visando a restauração dos painéis, concluída em maio de 2000.

          Com o megaprojeto de revitalização do Porto Maravilha, houve a promessa do atual prefeito, Eduardo Paes, de preservar algumas pilastras do Gentileza. Entretanto, se até seis vigas de aço de vinte toneladas cada desapareceram sem que ninguém tenha visto, apesar das várias câmeras de monitoramento espalhadas pela cidade, será mesmo que os painéis de Gentileza serão preservados conforme o prometido ou virarão pó?
          Dia 24 de novembro de 2013 o primeiro trecho do Elevado da Perimetral foi implodido. Até o momento o que foi feito desses murais continua sendo um grande mistério. Mas ao menos salvaram em um blog as fotos  de 55 pilastras restauradas do profeta Gentileza. 
          Inspirado nas ideias de Lefebvre para investigar as ligações entre urbanização, capitalismo e direito à cidade, o geógrafo britânico David Harvey escreveu um artigo inicialmente publicado na revista New Left Review, em 2008, que nos dá algumas pistas quentes para compreender esse episódio um pouco mais.
          Os processos de reurbanização seguem um modelo mundial que atende prioritariamente aos interesses neoliberais de economia globalizada a qualquer preço dirigida aos que dispõem de capital para reinvestir seus lucros em parcerias público-privadas. Utilizando a força do braço armado do Estado, promovem remoções forçadas e gentrificação em determinadas áreas que julgam economicamente promissora. 
          Na medida em que não se investe na mesma proporção em transporte público, saúde, educação e infraestrutura de saneamento básico nas periferias (que a cada verão sofrem com inundações ou deslizamentos após obras públicas de fachada, e responsabilizam a natureza ou o lixo dos pobres pelo caos), vislumbra-se o porquê dos movimentos sociais defenderem generalizadamente relações anárquicas com o poder. E assim as manifestações, que andam violentamente explodindo em várias capitais do mundo, em contrapartida justificam o investimento do Estado em segurança pública.
          A crítica do profeta Gentileza ao "capetalismo", intencionalmente se referindo ao capital como se fosse o capeta da humanidade em seu círculo tendencioso e ilusório, não foi senil ou desatinada diante do que se vive hoje nas grandes metrópoles. 

Fontes
MUSEU VIRTUAL GENTILEZA

IMPLOSÃO DA PERIMETRAL

ENTREVISTA COM AGAMBEN

11 de dezembro de 2013

Brinquedos de ontem e hoje - relato de um Congresso (UFF /2013)

                                                                                                                                                                                     Cris Muniz
Fomos ao Congresso de Brinquedos de Ontem e Hoje apresentar um relato preliminar do projeto Canteiro de Obras na “Ciranda de ideias”, uma modalidade muito interessante de troca de experiências na forma de conversa entre pares. Ali estavam presentes outras iniciativas de caráter não formal, assim como as brinquedotecas, a maioria de escolas de formação de professores, para refletir os limites e possibilidades de um trabalho com o lúdico na formação docente.
          Gostaria de compartilhar aqui algumas questões apresentadas neste evento por Jader Janes, um professor do grupo de pesquisa em Geografia da Infância que penso dialogar com nossas investigações/inquietações. Os estudos desse grupo pensam a criança como um ser geográfico considerando o espaço uma dimensão significativa para sua vida em sociedade e investigam o que definem como territorialidades infantis. Segundo Janes, a investigação da Geografia da Infância busca a forma como a categoria da espacialidade é concebida e como interfere em nossa relação com as crianças e na produção de suas infâncias.
          A pesquisa apresentada no Congresso discutiu o conceito de evolução linear da noção de espaço – do mais próximo para o mais distante – presente nos currículos escolares. Esses gradativamente constroem os diferentes níveis ou dimensões do espaço – eu/minha casa, minha sala, escola, bairro, cidade,  mundo, problematizando as relações entre o mundo e o que está aqui próximo. Esses questionamentos partiram da pesquisa desenvolvida pelo grupo com crianças migrantes. Nelas, a lógica espacial ensinada nas escolas não apareceu, o que aponta para a possibilidade de pensar outras geografias e outras escalas, e para a ideia de topofilia indicada pelos elos afetivos entre a pessoa e o lugar ou seu ambiente físico.
          As crianças migrantes estudadas, mas também outras envolvidas na pesquisa autodenominam-se mudantes – aqueles que mudam constantemente de moradia dentro da própria cidade – e demonstram possuir uma noção de espaço/lugar próximo não como referência espacial, mas afetiva.  O lugar mais destacado pelas crianças migrantes/mudantes foi a escola, especialmente os seus lugares de brincar e de comer, como o refeitório, evidenciando-se aí a prática do territoriolugar em uma escala vivencial, e remetendo ainda à ideia de paisagem que, para além das formas, comportam também cheiros, sons, sabores...
Livro lançado por Jader Janer em 2013 pela editora mediação
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Rememorando passeios:
Topocídio e Autointerdição


          Durante seu relato, Jader comentou ainda a ideia de topocídio ao se referir às remoções de populações pobres de seus lugares/moradias (hoje, como ontem, tão presentes em tempos de Copa do Mundo e Olimpíadas!). Essas reflexões me fizeram recordar alguns passeios que fiz com crianças do CIEP de Ipanema logo no início do projeto Ônibus da esperança (Bus der Hoffnung). Creio ser possível pensar em um tipo de topocídio ao inverso pelo qual moradores de determinados lugares não podem se mover ou pior não se permitem nem mesmo sair.
          Foi isso que senti, por exemplo, quando propus nosso mais longo passeio à cidade de Petrópolis anunciando, com os termômetros recém-chegados à escola para aulas de geografia, que teríamos que subir a serra com lindas montanhas muito altas e iríamos perceber as mudanças de temperatura e tudo o mais. O que aconteceu? Algumas crianças simplesmente não apareceram no dia do passeio. Soubemos depois, com medo de cair lá de cima das montanhas. Outras passaram mal quando paramos no alto da serra, achavam que não estavam mais respirando. Com esse mesmo grupo, em nosso primeiro passeio ao Jardim Botânico/RJ, fui interpelada pela funcionária do orquidário preocupada se as crianças não iriam destruir as orquídeas, ao que não me contive e respondi que elas já haviam comido as carnívoras antes! Depois disso, no caminho de volta deste mesmo passeio, descemos na orla da Lagoa e fomos a pé até a rua Teixeira de Melo, em Ipanema, que dá acesso ao elevador para o CIEP Ipanema, e aí então foram as crianças que, refratando talvez a experiência vivida, me interpelaram perguntando se poderiam andar ali, se não seriam chamadas de faveladas?! Enfim são muitas as exclamações pela interdição ou autointerdição de acesso aos lugares, pela falta de oportunidade de viver lugares experiências, esses onde podemos nos sentir imersos na cidade, pertencendo a ela como qualquer cidadão.

A participação da criança na cidade 4 - Infância e Cidade

Márcia Fernandes
Nesta quarta postagem da série "A criança e sua participação na cidade" trazemos várias perguntas levantadas pela Dissertação de Mestrado da palestrante Fernanda Muller e pelas colocações da coordenadora de comunicação da UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), Imaculada Prieto.  Trata-se de uma reflexão sobre as políticas públicas e as ações sociais voltadas para as crianças. Elas as atendem de fato? Até que ponto são bem-sucedidas? Enfim, em que medida a infância pertence à criança? As concepções da criança sobre a cidade podem gerar novas concepções sobre a infância? Que contribuições podem ser feitas pelos estudos das crianças?  Que medidas possibilitam e limitam a participação da criança na cidade?
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          Em sua pesquisa Infância e Cidade: a criança em foco, Fernanda Muller diz: "a infância moderna constrói a criança fora da sociedade, silencia suas vozes e nega a sua autonomia. Será que a modernidade rotula uma infância moldada e propositalmente pensada e desejada pelos adultos e não pelas crianças? Silencia suas vozes?" E se nos permitimos olhar pelos olhos da criança, fazendo este exercício que a autora chama de exercício de percepção e escuta infantil, conseguiremos pensar como a criança? Para a autora, a chave está em poder enxergar a criança como um agente social.
          Com um grupo de crianças em Porto Alegre, ela observa como acontecem as entradas e as permanências no campo da diversidade. Para isso, ela lança mão de uma metodologia que leva em consideração a amplidão do conceito de cidade pois esse é um conceito abstrato, diferente no pensamento de cada um, já que relacionado às experiências de cada pessoa.    
          A palestrante falou sobre a metodologia usada na pesquisa  – o recurso da fotografia – , junto a três grupos de diferentes bairros de variadas classes sociais. Após uma incursão fotográfica, promoveu-se uma conversa com as crianças que relataram o que  acharam mais e menos interessante nesse passeio fotográfico.
          Dar a criança esse tipo de autonomia é trazer à luz o seu conceito de espaço, de tempo e de mundo, diferentes do adulto e divergentes, muitas vezes, do conceitos aprendidos na escola e da família. Essa autonomia conceitual (Marchi, 2007)  dá visibilidade às interações infantis, tal como mostradas no documentário premiado pelo Oscar Nascidos em Bordéis que retrata a vida de crianças no bairro da Luz vermelha em Calcutá e filmado a partir de incursões fotográficas feitas pelas crianças em que elas registravam as suas impressões sobre as ruas do bairro.  A fotografia, dessa maneira, torna-se uma ferramenta de expressão e de voz dessas crianças para o mundo.
          Fernanda Muller propõe, na conclusão de seu trabalho, que para se chegar às crianças é importante que essas sejam  incluídas  nas discussões sobre a cidade que habitam, isto é, que ouçamos a voz das crianças. É que proponhamos um novo modelo de cidade a partir do seu ponto de vista. Enfim, saber quais seriam os  modelos de cidade propostos pelas crianças.
          A autora salienta que é preciso que se  promovam novas ideias sobre quem tem o direito de usar os novos espaços urbanos, obedecendo aos princípios tanto de agência quanto de estrutura. Desse modo, ela traz a novidade da  cidade como laboratório público e as crianças como membros das discussões políticas.
Nascidos em Bordéis (86', 2004). Born Into Brothels: Calcutta's Red Light Kids. Dir: Ross Kauffman e Zana Briski.  Premiado nos mais importantes festivais internacionais, incluindo Sundance e a International Documentary Association, essa co-produção EUA/India é assinada por dois cineastas que narram sua experiência em Calcutá, quando conheceram de perto a vida dos filhos de prostitutas que trabalham na área dos bordéis da cidade.
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          A coordenadora de comunicação da Unicef no Rio de Janeiro, Imaculada Prieto, trouxe para o debate o tema O direito ao direito, em relação a Comunicação, Infância e Cidade, isto é, como aconteceram os diferentes momentos e aspectos na trajetória da reformulação do direito infantil, considerando que esse se dá principalmente através da expressão, participação e divulgação, independente dos meios e  das fronteiras.
          Ao destacar a importância da participação, Imaculada Prieto demonstra sua sintonia com o Estatuto da Criança e Adolescente como uma expressão do direito ao direito através de iniciativas que passam a ser construídas em torno da criança. Várias  crianças, de várias cidades e culturas passam então a fazer parte da cena: a indígena, a quilombola, a especial etc.

          Pensando neste direito universal, que deve valorizar a integração social, levando a criança a participar e a exercer sua cidadania, se consegue atingir outros objetivos, ou seja, a ter direito a outros direitos. Participar, sugerir, criar propostas em sua cidade é um exercício de valorização estratégico que visa superar as desigualdades sociais.
          Um município, portanto, precisa abrigar uma cidade infância e não uma cidade de infância moderna. Somente através da cultura da participação infantil em seus próprios espaços se conseguirá redimensionar esses mesmos espaços de pertencimento social da criança.  Para tanto, é preciso que se permita a participação infantil no diagnóstico de soluções para mudanças nas políticas públicas em sua cidade.