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9 de julho de 2020

ENCONTRO!


Cristina Muniz
Passeio bom não se faz sozinha!  Talvez por isso, como professora, sempre gostei de passear com crianças. Parque da Catacumba. Quinta da Boa Vista. Praia de Copacabana. Parque de Madureira. Alguns lugares escolhidos pelas crianças, outros por mim. Foi no meio dessas escolhas, que ir a um Shopping do subúrbio apareceu como uma proposta das crianças moradoras e frequentadoras desse shopping. 
Nunca gostei de shopping, uma caixa de vidro rodeada de vitrines que convidam a entrar e consumir aquilo que a gente nem precisa. Uma ilusão de passeio – é como vejo esse lugar. Mas as crianças, não. Dizem que no shopping dá para correr, para brincar e quem não conhece, aprecia! Uma professora pesquisadora, crítica do consumo, concordaria em levar crianças para passear num shopping? Nem pensar! Mas também como assim? Uma professora pesquisadora não ouviria as crianças? Nascida e criada num bairro de classe média da zona sul do Rio de Janeiro, resolvo aceitar a proposta das crianças e no último fim de semana das férias escolares, querendo acreditar que pudesse encontrá-las por lá, vou ao Shopping do subúrbio. Sozinha.
 Já no trajeto de metrô entre a zona sul e a zona norte, fico ali meio perdida a observar.  Crianças sentam-se no assento preferencial e uma senhora bem vestida reclama muito da falta de educação. Quando vai saltar, ainda na zona sul, chama outra senhora mais distante para ocupar o seu lugar, ignorando outros idosos não tão bem vestidos ali ao lado. Embora sendo um trilho só, o trem da zona sul não vai até o subúrbio, e é preciso trocar de trem. Já na linha zona norte, crianças pedem ao pai para se sentarem, e lhes é oferecido o assento preferencial – todos parecem concordar pois estão muito cansadas. Uma moça a quem peço informação se oferece para me levar ate a entrada do Shopping, pois vai saltar naquela estação. 
Chegando lá, vejo muitas crianças, todas acompanhadas de suas famílias. Observo por um tempo uma família com um menino que me chama a atenção pelo seu fascínio com a escada rolante. Deram muitas voltas na praça de alimentação, até que se sentam para comer. Na praça, três crianças brincam de pique entre as mesas, sob o olhar atento dos pais, e ninguém reclama – sim, dá pra correr e brincar no shopping.  Sigo pelos corredores das lojas e me vejo diante de algumas vitrines apreciando... Há mais jovens do que crianças contemplando as vitrines. As crianças, em geral estão de mãos dadas com os pais, pois o shopping está bem cheio neste sábado. Chego até um espaço cercado e com brinquedos, com poucas crianças, a um custo de 14 reais por 15 min de uso. Uma placa com tantas normas que só de ler ficamos inapetentes para brincar. 
Depois de muito rodar por ali, sento no meio da praça de alimentação para comer e vejo um menino que passa vendendo algo pelas mesas e, tão rápido como apareceu, sumiu. Eu o procuro com os olhos, me perguntando como ele está ali a vender balas ou algo assim – atividade proibida em qualquer shopping... Logo ele entra no espaço onde estou e passa pela minha mesa com uma bandeja na mão, vai se sentar atrás. Não olho ainda, reparando no homem que, sentado com a família ao meu lado o encara com desprezo. Isso se passa até essa família se levantar e sair, e ainda saindo o homem continua encarando o menino, suponho, pois não me virei para vê-lo ainda.  Só quando a família sai, volto-me para trás e vejo o menino com a bandeja sentado no banco. Vou até ele pensando que sua aparência e performance ali de alguma forma interrompe a narrativa que se espera de quem frequenta a praça de alimentação de um shopping: 
- Não quer sentar na mesa?   
- Não, aqui tá bom, diz ele, olhando aflito em volta.
- Acho que foi por isso que o homem te olhou daquele jeito. Você pode sentar na mesa pra comer melhor.
- Não ligo não, pode me olhar como quiser, estou vendo os seguranças. Eles não deixam vender aqui.
- Vem sentar na mesa comigo, podemos conversar? Ele aceita.
Conto que vim tentar encontrar as crianças que me inspiraram a passear naquele shopping. Confesso que era a minha primeira vez ali.  
- Você veio daonde? 
- Vim de metrô, de Copacabana. A gente troca de linha e salta quase aqui dentro. 
- Você veio da zona sul? Não teve medo de vir pra cá? Qual estação? 
- Cantagalo.
- Já ouvi falar, tem também o Pavão e Pavãozinho, né?
- É. Já trabalhei lá.
- Queria mesmo é conhecer a Rocinha, deve ser bacana ver o mar lá de cima!
Serginho se apresenta me dando seu contato do Facebook. Pergunta meu nome, pois não aceita qualquer um no seu Face. Deixa muito do que está no prato, bastante arroz, feijão e um pedaço de frango. Quando lhe pergunto se não vai comer, ele diz que não estava com fome, mas quando pediu dinheiro em uma mesa, a pessoa foi até o restaurante e fez esse prato. Não perguntou a ele o que queria, ou se queria comer, avalio. O cardápio parece dizer também de um presumido quanto ao outro que se supõe carente de alimento, e lembro-me do samba da Tuiuti vencedor do carnaval este ano: “... ao me dar escravidão e um prato de feijão com arroz!”.
Ele conta de sua vida, fala das favelas da zona sul e de onde mora e circula, no Jacarezinho e na Mandela, duas favelas ali do entorno. Demonstra ainda conhecer tudo sobre as facções do tráfico, trabalho para o qual já foi convidado pelo namorado da tia. Saiu da escola este ano na sexta série, mas gosta de matemática, história e educação física. Sua mãe teve que ir embora depois de um trágico acidente, e ele fica cada dia na casa de um parente. Alguns gostam dele, outros não. 
- Você vende o que? Bala? 
- Hoje não vendi nada. O mercadão estava fechado, mas fiz 60,00 reais, mostra tirando do bolso, orgulhoso, as notas dobradas entre os dedos. 
- E como fez esse dinheiro? 
- Eu falo assim: intera para pagar um lanche?
- Ah. E você tem planos para essa grana? 
- Sim, vou juntar até cem e colocar aparelho no dente.
- Mas cem reais dão pra colocar aparelho?
- Lá no morro dá!
- Pra que? Seus dentes são lindos!
Ele sorri largo e diz que, então, vai comprar um tênis da Nike, pois na favela dá para comprar também.
- Serginho, o que você gosta no shopping? 
- Não, eu venho vender ou pedir dinheiro.
Insisto, lembrando o que as crianças falaram sobre o “apreciar” e ele diz que não dá para curtir sem dinheiro, pois tudo tem que pagar. Nessa hora, olha os cartazes dos filmes bem à nossa frente e diz que quer ir ao cinema. Vamos comprar seu ingresso, mas ele não consegue entrar. Estava sem documento. Desiste.
Anuncio que vou embora e ele faz questão de me acompanhar até a entrada do metrô.  Ali, no miúdo desse encontro, sentados à mesa por alguns momentos, trocando olhares e conversas sobre a vida, sinto um vínculo concreto que nos une na igualdade de uma comunidade possível. Com esse sentimento, vou caminhando com esse menino até a entrada do metrô. Nos abraçamos. Serginho me espera entrar e diz: cuidado! Vai com Deus!
Este menino da foto vive no Amazonas (fonte Portal do Zacarias). A foto das caixas de sapatos está no Facebook. A favela da foto é do Cantagalo, fotografada por um estudante australiano, Sam Faigen, e encontra-se no site do RioOnWatch.

Cristina Muniz é coordenadora do Laboratório Brinquedoteca do Instituto Superior de Educação (Iserj). Autora da tese "Passeios com crianças: cidade em tensão", acessível no site www.proped.pro.br

Um comentário:

  1. não se pode observar uma onda sem levar em conta os aspectos complexos que concorrem para formá-la e aqueles também complexos a que essa dá ensejo. ( inspiração de Calvino/Palomar)

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