Produzido no Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro - ISERJ. Nosso e-mail: cidadeeducativa@googlegroups.com

6 de janeiro de 2014

Rilke na Rodoviária do Rio de Janeiro

Quanto mais solitários houver, tanto mais solene, comovente e poderosa é a sua comunidade.
Rainer Maria Rilke
      
Foto O globo
         Para falar de rodoviária, às dez e meia da manhã, numa segunda-feira, no dia 30 de dezembro de 2013, é preciso olho, muita força de vontade e um lugar na janela já dentro do ônibus com ar refrigerado. Depois de vencida a fila errada para a impressão das passagens compradas na internet, a rampa de acesso às plataformas onde se espera e esperam-nos os ônibus, da sucessão de quente-morno-quente-frio, de alguns espirros pelas diferenças de temperatura, inicio a enumeração, a chamada dos rostos, dos gestos, dos sentimentos flutuantes pela multidão de mochilas, malas de rodas e sem, em filas várias, nas escadas rolantes, no banheiro, nos quiosques de biscoito, na loja de perfumes e na lanchonete.
       Nenhum rosto em particular me vem a não ser talvez o da atendente da companhia de ônibus que, em saltos altos, e com suas pernas muito finas em calças justas, correu para saudar um homem corpulento e bonachão, ao vê-lo sair de uma porta privativa. Ele estava de crachá, e tinha cara de dono satisfeito de um negócio que está indo muito bem. Ele olhou para baixo e retribuiu o sorriso da mocinha. Será um padrinho? Talvez  ele esteja perguntando “e você como está indo no seu novo posto?” Ao que ela responde “muito bem. Tudo isso é tão excitante.”
       Sim, um outro rosto chega agora, o da vendedora da loja de perfumes onde, inoportunamente, fui procurar um lápis de sobrancelha enquanto esperava meu companheiro de viagem à procura de informações sobre onde imprimir as nossas passagens. Quando perguntei pelo lápis, essa outra mocinha me olhou com cara de poucos amigos, não sei porquê. Retribuí o olhar, centrando meu foco entre as sobrancelhas dela. Já li que esse é um bom truque para baixar a bola de mal-humorados. Aparentemente funcionou pois rapidamente ela foi buscar o lápis no mostruário. “Tem tampa?”, perguntei. “Tinha.” E começou a abrir gavetas. “Desculpe, vou ficar te devendo.” “Não tem problema. O bom de querer comprar uma coisa inútil é que, se ela estiver em falta, não tem problema.”
Foto Tania Rego-Agência Brasil
     O rosto do vendedor de biscoito também se sobressaiu por um momento, quando lhe pedi para provar um biscoito de polvilho sabor queijo, depois de ter pedido para provar um de sabor natural. “Ah, moço, é só unzinho.” “É?” (Acho que ele me olhou entre as sobrancelhas.) “E se todo mundo pedisse uma provinha de tudo?” Então vem o rosto da moça da fila do caixa na lanchonete, que se virou para mim, logo atrás dela, quando uma menina postou-se à sua frente. Descaradamente. Com sua notinha de dois reais na mão levantada. “Menina”, disse eu, “tem uma fila”. E ela me olhou, humilde, e foi para trás. Depois vi a mãe dela com um bebê no colo e fiquei um segundo sem saber o que sentir.
Foto Tania Rego-Agência Brasil
     Agora o motorista se sentou em sua poltrona e girou a ignição de partida. A cena da multidão começa a me escapar. O detalhe dos quatro funcionários de empresas de ônibus, com o mesmo uniforme, de gravatas pretas e finas e camisas de algodão branca de manga curta, com sapatos fechados e calças escuras, pernas largadas sobre a pista, sentados no meio-fio de uma das plataformas de embarque, todos jovens e cor de azeitonas, cada um com o seu celular e seus pensamentos, essa imagem em particular faz com que a saída da rodoviária se dilua lentamente.
     Enfim, na rua, penso em Rilke. Na melodia das coisas, como ele chamou o pano-de-fundo no qual o eu e um outro se encontram. Sem essa melodia, não haveria um rosto sequer. Ouço-a. É ela que me faz  sentir pena por ser quase inexistente, ser surda para a música do silêncio. O som do motor do ônibus conduz meu olhar para a janela. Por mim passa um rosto e outro que agora não vejo mais porque estou já a caminho, na rua, com os pensamentos como carneiros ávidos para serem soltos do curral, doida para que a voz aguda de uma passageira se cale. Ela dificulta a gente olhar, ouvir a melodia das coisas, se despedir da rodoviária, da cidade, do ano e de todas as ausências. Mas vou tentar. Vou fechar um pouco os olhos, para abrir espaço de ver novas coisas, e parar de escrever porque agora isso também atrapalha o olhar, a despedida e a viagem até 2014.
Foto Cartummania
Bia Albernaz 
***
Trechos de A melodia das coisas, de Rainer Maria Rilke (trad. Cláudia Cavalcanti)

II. Não posso imaginar mais feliz sabedoria
do que esta:
que é preciso ser iniciante.
Alguém que escreve a primeira palavra atrás de um
secular
travessão.

XI. E a arte nada fez senão mostrar-nos a confusão na qual sempre nos encontramos. Ela nos inquietou, em vez de nos fazer silenciosos e calmos. E provou que cada um de nós habita uma ilha diferente; só que as ilhas não são distantes o suficiente para que permaneçamos solitários e despreocupados. Um pode molestar o outro, ou assustar, ou perseguir com lanças – mas ninguém pode ajudar o outro.

XVI. Seja o canto de um candeeiro ou a voz da tempestade, seja o respirar da noite ou o gemido do mar que o rodeia – sempre desperta por trás de você uma vasta melodia, tecida por mil vozes, na qual só aqui e ali há espaço para fazer um solo. Saber quando é a sua vez – eis o segredo da solidão. Assim como a arte do verdadeiro relacionamento é deixar-se cair do alto das palavras naquela melodia compartilhada.

XVIII. Nós, no primeiro plano, somos bem assim. Benditos desejos. Nossas realizações acontecem longe, em fundos luminosos. Lá existe movimento e vontade. Lá se passam as histórias, de que somos a obscura epígrafe. Lá está nosso encontro e nossa despedida, consolo e tristeza. Lá estamos nós, enquanto caminhamos no primeiro plano.

XXI. Se quisermos, portanto, nos iniciar nos segredos da vida, é preciso pensar em dois aspectos: Um deles, a grande melodia, da qual participam coisas e aromas, sentimentos e passados, crepúsculos e desejos; e então: as vozes de cada um, que complementam e aperfeiçoam todo esse coro. E para fundar uma obra de arte (ou seja: uma imagem da vida mais profunda da vivência, mais do que de hoje, sempre possível em todos os tempos) será necessário relacionar corretamente e equilibrar as duas vozes: uma, a daquela hora em questão, e a outra, de um grupo de pessoas dentro dela.

XXXIX. E somos todos frutos. Mas estamos pendurados em galhos estranhamente entrelaçados e muitos ventos nos sopram. Tudo o que possuímos é a nossa maturidade, doçura e beleza. Mas a força para tal flui pelo tronco de uma raiz, alastrada por mundos afora, em todos nós. E se quisermos prestar testemunho de seu poder, cada um de nós terá de usá-la, em nosso mais solitário sentido. Quanto mais solitários houver, tanto mais solene, comovente e poderosa é a sua comunidade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário