Pequena reflexão sobre as pessoas abandonadas nas ruas das grandes cidades
Marcia Tiburi (Revista Cult, 09 de março de 2011)
Nas grandes cidades, pessoas que não têm onde morar são contraditoriamente chamadas de “moradores” de rua. É um eufemismo que acoberta o quadro da injustiça social típica das sociedades em fase de capitalismo selvagem, aquele no qual a eliminação do outro é a regra. Que tantos e cada vez mais vivam nas ruas é uma prova de que o famoso instinto gregário do ser humano se esfacela, ou assume formas cada vez mais enganadoras porquanto mais voláteis em uma sociedade que é, ao mesmo tempo, de massas e de indivíduos que não têm a menor noção do que significa o outro.
O aumento das relações virtuais em detrimento das relações “atuais” é a própria perversão das massas marcadas pela anulação física individual em nome de um eu abstrato, sustentado apenas como imagem, como avatar. E que tem como correspondente um outro reduzido à sua mera abstração. Há, certamente, exceções para a regra da distância com que o eu mede o outro.
Dizem as pesquisas que o número de pessoas vivendo sem teto cresceu nos últimos anos por causa do desemprego. E são milhares. Motivos além do desemprego podem confundir quanto ao sentido (e o sem sentido) da complexa experiência vivida por essas pessoas. Afinal, pode-se encontrar entre os que vivem nas ruas até mesmo quem não se sente em situação de injustiça social.
A população das ruas das grandes cidades é composta de habitantes (ou desabitantes) provisórios ou não, que estão ali por motivos diversos. Muitas vezes são afetivos. Não é raro encontrar ricas histórias de vida entre as pessoas sem morada, desde aquele que renunciou à vida burguesa por considerá-la insuportável, até quem por meio de inesperadas leituras filosóficas criou um significado para o ato de “habitar” a transitoriedade, ou seja, “desabitar” instransitivamente e estar assim, na mera existência.
Que não habitar uma casa possa significar uma experiência existencial é, no entanto, apenas a exceção que confirma a regra da contemporânea injustiça social a cuja base racional e afetiva tantos entregam as forças. Renunciar, desistir, jogar a toalha, permitir-se a impotência como o Bartleby, de Melville, ou o fracasso, como um dia afirmou J. L. Borges, pode ser o único modo de viver em um mundo marcado pela melancolia e pelo sem sentido em termos políticos, estéticos e metafísicos.
O cenário social contemporâneo é o espaço e o tempo dessa possibilidade de fracasso que diz respeito à potencialidade mais profunda de nossos tempos. É a forma mais terrível do mal, a da banalização que se estabelece na vida humana como força lógica. Como um “deixar acontecer” ao qual damos o nome de “abandono”, esse ato de exílio, de ostracismo, de curiosa rejeição sem ação. A mendicância das pessoas é apenas a verdade íntima do capitalismo como mendicância da própria política deixada a esmo em nome de antipolíticos interesses pessoais. A mendicância é a imagem social das escolas, dos hospitais públicos, do salário mínimo…
Democracia de teto e paredes
“Moradores de rua” são a figura mais perfeita do abandono que está no cimo da devoração capitalista. Convive-se com eles nos bairros elegantes das cidades grandes como se fossem um estorvo ou, para quem pensa de um modo mais humanitário, como um problema social a ser resolvido filantropicamente. Alguns moram em lugares específicos, têm sua “própria” esquina, carregam objetos de uso aonde quer que vão, outros perambulam a esmo desaparecendo da vista de quem tem onde morar. São meras fantasmagorias aos olhos de quem não é capaz de supor sua alteridade. Esmagados pela contradição de morar onde não mora ninguém, não têm o direito de ser alguém. Partilham o deslugar. E, no entanto, praticam o mesmo que os outros dentro de suas casas: dormem, comem, fazem sexo. A condição humana é o que se divide por paredes ou na ausência delas. A democracia torna-se uma questão de nudez e exposição da vida íntima.
Ninguém “mora na rua”; antes, quem está na rua não mora. Quem está fora dos básicos direitos constitucionais está excluído da sociedade. E muito mais além da Constituição, está excluído pelo próprio status com que é medido. O status de “morador de rua” é apenas um modo de incluir os excluídos na ordem do discurso acobertadora do fascismo prático de cada dia oculto sob o véu da autista sensibilidade burguesa. Se o princípio de autoconservação a qualquer custo é a base da ação de indivíduos unidos na massa, está imediatamente perdida a dimensão do outro sem a qual não podemos dizer que haja ética ou política. Mesmo sob o status de morador de rua, o mendigo da nossa esquina é a prova do fracasso de todos os sistemas. Se as estatísticas não mudarem comprovando que a tendência da exceção pode ser a regra, talvez a democracia de teto e paredes não sirva mais a ninguém em breve. Só que às avessas.
O aumento das relações virtuais em detrimento das relações “atuais” é a própria perversão das massas marcadas pela anulação física individual em nome de um eu abstrato, sustentado apenas como imagem, como avatar. E que tem como correspondente um outro reduzido à sua mera abstração. Há, certamente, exceções para a regra da distância com que o eu mede o outro.
Dizem as pesquisas que o número de pessoas vivendo sem teto cresceu nos últimos anos por causa do desemprego. E são milhares. Motivos além do desemprego podem confundir quanto ao sentido (e o sem sentido) da complexa experiência vivida por essas pessoas. Afinal, pode-se encontrar entre os que vivem nas ruas até mesmo quem não se sente em situação de injustiça social.
A população das ruas das grandes cidades é composta de habitantes (ou desabitantes) provisórios ou não, que estão ali por motivos diversos. Muitas vezes são afetivos. Não é raro encontrar ricas histórias de vida entre as pessoas sem morada, desde aquele que renunciou à vida burguesa por considerá-la insuportável, até quem por meio de inesperadas leituras filosóficas criou um significado para o ato de “habitar” a transitoriedade, ou seja, “desabitar” instransitivamente e estar assim, na mera existência.
Que não habitar uma casa possa significar uma experiência existencial é, no entanto, apenas a exceção que confirma a regra da contemporânea injustiça social a cuja base racional e afetiva tantos entregam as forças. Renunciar, desistir, jogar a toalha, permitir-se a impotência como o Bartleby, de Melville, ou o fracasso, como um dia afirmou J. L. Borges, pode ser o único modo de viver em um mundo marcado pela melancolia e pelo sem sentido em termos políticos, estéticos e metafísicos.
O cenário social contemporâneo é o espaço e o tempo dessa possibilidade de fracasso que diz respeito à potencialidade mais profunda de nossos tempos. É a forma mais terrível do mal, a da banalização que se estabelece na vida humana como força lógica. Como um “deixar acontecer” ao qual damos o nome de “abandono”, esse ato de exílio, de ostracismo, de curiosa rejeição sem ação. A mendicância das pessoas é apenas a verdade íntima do capitalismo como mendicância da própria política deixada a esmo em nome de antipolíticos interesses pessoais. A mendicância é a imagem social das escolas, dos hospitais públicos, do salário mínimo…
Democracia de teto e paredes
“Moradores de rua” são a figura mais perfeita do abandono que está no cimo da devoração capitalista. Convive-se com eles nos bairros elegantes das cidades grandes como se fossem um estorvo ou, para quem pensa de um modo mais humanitário, como um problema social a ser resolvido filantropicamente. Alguns moram em lugares específicos, têm sua “própria” esquina, carregam objetos de uso aonde quer que vão, outros perambulam a esmo desaparecendo da vista de quem tem onde morar. São meras fantasmagorias aos olhos de quem não é capaz de supor sua alteridade. Esmagados pela contradição de morar onde não mora ninguém, não têm o direito de ser alguém. Partilham o deslugar. E, no entanto, praticam o mesmo que os outros dentro de suas casas: dormem, comem, fazem sexo. A condição humana é o que se divide por paredes ou na ausência delas. A democracia torna-se uma questão de nudez e exposição da vida íntima.
Ninguém “mora na rua”; antes, quem está na rua não mora. Quem está fora dos básicos direitos constitucionais está excluído da sociedade. E muito mais além da Constituição, está excluído pelo próprio status com que é medido. O status de “morador de rua” é apenas um modo de incluir os excluídos na ordem do discurso acobertadora do fascismo prático de cada dia oculto sob o véu da autista sensibilidade burguesa. Se o princípio de autoconservação a qualquer custo é a base da ação de indivíduos unidos na massa, está imediatamente perdida a dimensão do outro sem a qual não podemos dizer que haja ética ou política. Mesmo sob o status de morador de rua, o mendigo da nossa esquina é a prova do fracasso de todos os sistemas. Se as estatísticas não mudarem comprovando que a tendência da exceção pode ser a regra, talvez a democracia de teto e paredes não sirva mais a ninguém em breve. Só que às avessas.
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Para gerar visibilidades
O Coletivo Heróis do Cotidiano, liderado pela professora Tania Alice, da Escola de Teatro da Unirio. faz performances nas ruas para mostrar a importância de pequenos atos, como por exemplo, chamar atenção de cidadãos invisíveis, colocando-se ao lado deles, na mesma posição, enquanto dormem nas ruas, em bancos ou no chão.
Pequenos atos heróicos podem ser feitos por qualquer pessoa no dia a dia.