Pont Neuf, em Paris, embrulhada por Christo e Jeanne Claude (1975-85) http://www.christojeanneclaude.net/pn.shtml
Arnaldo Bloch
Já tentaste olhar a tua própria cidade com olhos estrangeiros?
Para tanto é preciso soltar os olhos e a mente e, durante longos minutos, te esqueceres de quem és, de tua condição socioeconômica-cultural-mental-gástrica, de teus níveis e teus desníveis no banco, na banca e no peito, de teus preceitos, teus conceitos, teus preconceitos – e só olhar, olhar sem observar, olhar sem olhar, só ver.
Ver sem pensar, sem julgar, mais que distraidamente, os corpos em movimento e a inércia também.
Trata-se de um olhar estrangeiro, de ver a essência da cidade em todos os lugares, seja em que porção dela for, pode ser na praia, pode ser na Avenida Copacabana, pode ser em Realengo, pode ser no jongo, pode ser na linha de trem, a essência está ali, e pronto, não tem mais nem menos, não tem bordo nem estibordo, é cidade.
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O olhar estrangeiro para a própria cidade é mais impactante que a experiência de conhecer uma cidade nova de fato, no próprio país ou numa viagem ao exterior, por exemplo. O olhar estrangeiro para a própria cidade parece-se mais com o primeiro olhar, aquele que se tem da cidade e das pessoas e das coisas quando se é criança, quando se começa a conhecer o mundo.
É um tempo em que a cidade, a rua, a casa, a mãe, o pai, a loja, a árvore, o céu, a moça, a terra, a vida, o sono, o gelo na bebida amarela, o mar, o cachorro, o cheiro, chocolate, os olhos, o espelho, a música, as cigarras, o verão, o gorro, o inverno, a bola, o jogo – é tudo a mesma coisa: mundo.
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Esse olhar estrangeiro para a própria cidade pode ser um fator de êxtase quando nos acostumamos a outros olhares, impregnados de problemáticas e frustrações matemáticas, impregnados do nosso ódio e da nossa culpa, do nosso medo dos outros e de nós, da nossa tristeza com a miséria, da nossa falta de falarmos uns com os outros sem que algo sempre pareça estar fora do lugar, sem que a sombra da mentira paire e a confiança seja carregada pelo vento.
A culpa, aliás, é o mais forte inimigo desse olhar mais que distraído, tão fundamental. A culpa nos diz: “Não tens o direito de, ao menos por umas horas, ou minutos mesmo, sentir-te feliz, pois o mundo lá fora desaba e a injustiça impera, estou aqui, a culpa, a desafiar-te, a patrulhar teus sentidos egoístas.”
Mas dar folga ao mundo cá dentro é um dever pessoal, o de encontrar esse tempo, o da coragem de descartar um pouco o drama lá fora e manejar um pouco as cartas do teu corpo, da tua mente, da tua emoção, em benefício da tua paz interna.
Esse olhar, a capacidade de procura-lo e de tê-lo, é um olhar que nos afasta da violência (a nossa violência, bem entendido), do nosso próprio fundamentalismo, das nossas pulsões de agir sem pensar e de só pensar depois de agir.
Nova Babilonia, Constant Nieuwenhuis, 1963
É a partir desse olhar, na interação com a cidade e com o mundo, que encontras a porta para a tua própria essência, de ver-te e sentir-te menino diante de tudo, e de captar, nessa experiência, atua própria alma, no sentido mais concreto, biofísico, da palavra, e de voltar para a civilização constituída com mais força de viver, de confiar, de acreditar, de ajudar.
Pode não parecer, mas a razão – da qual precisamos para enfrentar a vida dentro das normas socialmente estabelecidas – só funciona direito se somos capazes de lhe dar um chega-pra-lá e sonhar, rir um pouco de tudo, largar de ser mané e de achar sempre tudo uma merda.
Qualquer um é capaz disso, e muitas vezes, o mané que está na pior é ainda mais capaz disso que o mané que, estufado, balança lá do topo.
Aliás, o topo e o pior podem facilmente se confundir.
Tudo depende dessa gangorra entre olhar, pensar e ser, ou não ser, quem tu és. [...]
O Globo, 04/02/2006
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